quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Angústia

Angústia, ao atravessar um rio, viu uma massa de argila e, mergulhada nos seus pensamentos, apanhou-a e começou a modelar uma figura.
Quando deliberava sobre o que fizera, Júpiter apareceu. Angústia pediu que ele desse uma alma à figura que modelara. e. facilmente, conseguiu o que pediu.
Como Angústia quisesse, de si própria dar um nome à figura que modelara, Júpiter proibiu e prescreveu que lhe fosse dado o seu. Enquanto Angústia e Júpiter discutiam, Terra apareceu e quis que fosse dado o seu nome a quem ela fornecera o corpo.
Saturno foi escolhido como árbitro. E este, equitativamente, assim julgou a questão:
"Tu, Júpiter, porque lhe destes a alma, tu a terás depois da morte. E tu, Terra, porque lhe destes o corpo, tu o receberás após a morte. Todavia, porque foi Angústia quem primeiramente a modelou, que ela a tenha, enquanto a figura viver.
Mas, uma vez que existe entre vós uma controvérsia sobre o nome, que ela seja chamada 'homem', porque feita do humus."
(Fábula 220 de Caius Julius Hyginus, escravo pessoal do Imperador Caio Júlio César Octávio)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Presença e ausência de Rogério Rossini

Vamos à procura de uma canção de amigo
que tenha um arranjo iluminado:
ruídos de bar, violinos de Bach,
regência de um maestro apaixonado
pela vida, embriagado de beleza e som.
E que bebia a alegria em grandes goles
com muita pressa, como se soubesse
que não faria a tempo a canção perfeita.
Vamos à procura de um choro só de flauta doce
que chore a perda do amigo, doce amigo
de mãos longas que não chegaram a compor
todos os adeuses a que tinham direito.
Vamos à procura de um réquiem
que não seja assim tão triste:
que tenha risos e guisos, quase uma ode à alegria
sobrepondo-se à dor, ao pranto, ao câncer.
Vamos à procura de uma elegia em pianíssimo
onde se desenham compassos, passos, abraços
entre clavas de sol e laços de ternura.
Vamos à procura da provável harmonia além da vida
que move estrelas, corações e mentes,
para entendermos a morte do amigo tão presente
e tão ausente: Rogério Rosalém Rossini.
(Poema de Nei Leandro de Castro, junho 1989. Foto imagens Google)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dever de casa

A casa visitada pelas brisas.
Aconchego de varanda.
O quarto. A planície da cama.
Lençóis com perfume de lavanda.
***
No verde da grama,
os pés quase alados
de uma mulher que ama.
***
Sala-de-estar
velhos amigos frente a frente.
Sala de estar contente.
***
Como requer água
o corpo que tem sede,
as paredes do alpendre
pedem rede.
***
Mesa farta, generosa mesa.
Doce campo de batalha,
lutas de gulas, gentileza.
***
Uma casa fria é abandono.
A casa tem o calor e o tamanho exatos
do coração do seu dono.
***
Na biblioteca, pise com cuidado.
Os livros são almas sensíveis
e têm um sono delicado.
(Poema de Nei Leandro de Castro, foto de Mário Meir)

domingo, 1 de agosto de 2010

Una città, una donna

Vejo-te desbravando o inédito, o jamais dito,
a aventura feita de águas e sombra, labirinto e canais.
Estás nua e estás de joelho, como quem pede, como quem peca
por antecipação. O cheiro que vem das águas sobe
pelas tuas narinas acesas, faz arfar os teus seios,
mas agora queres tão-somente a paz da città, o milagre da città,
embora tenhas um desejo mais intenso do que as marolas
de 1.500 anos inauguradas e acumuladas na tua pele.
Quem é mais bela e sensual? Quem mais misteriosa?
A città que seduz e enlouquece os homens e a história
ou a mulher nua, sensível, de joelhos, com uma provável
rosa entre os seios?
De longe e de perto, Casanova te devora com os olhos.
Carpaccio encharca com seus vermelhos profundos
as auréolas do teu corpo. Feminina, segue pelos labirintos
do espanto e do prazer. És quase sereníssima,
apesar do ardor em teus sentidos, da nostalgia
de uma noite de êxtase, de beleza, quando o teu corpo
de repente inundou todas as margens. E jamais
conseguiste outro êxtase tão intenso. Ondas, remanso e paz.
(Poema de Nei Leandro de Castro, foto do imagens do google)

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Despertar em Florença

Cedo, os sinos, sinos, sinos de Santa Maria Novella despertam os nossos sentidos. Um novo dia para renovar a paixão que sobe das ruas com seus ares seculares. Ruas palmilhadas por Da Vinci, Michelangelo e por Masaccio, um gênio que descobriu a morte aos 27 anos, não sem antes guiar Adão e Eva na sua saída quase honrosa do paraíso. Florença, renascença de amor e arte para sempre gravada nos nossos sentidos despertados pelos sinos, sinos, sinos de suas igrejas.
(Poema de Nei Leandro de Castro, ilustração de Masaccio)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Cego de azul

Molhando seus pés na areia
sonhou por mares antigos
em frios mastros sonhar.
Gritar veleiros à vista
ver sangue e cristal o mar.
Em noite escura saudoso
de um fugitivo luar
inventar bandos de luas
banhando a nudez no mar.
***
Seus olhos límpidas pérolas
de horizontes de além-mar
se abriam como velames
contra o vento azul do mar.
***
Molhando seus pés na areia
pisou na lua encharcada
que havia no espelho baço
da praia branco e luar.
***
Os olhos se dilataram
em ânsia de navegar.
Não viram a lua, o peixe,
veleiros a naufragar,
búzios, sargaços, estrêlas
- cegou-os o azul do mar.
(Poema de Nei Leandro de Castro in "O pastor e a flauta", ilustração de Van Gogh)

sábado, 17 de julho de 2010

O amor oculto

Onde se oculta o amor oculto? Nas franjas do mar? Na cortina dos cabelos? Faz bem à alma tocar o seu corpo ou simplesmente vê-lo. O amor oculto tem um sorriso que lembra sons de flauta e de guizos. Seus olhos escuros, dissimulados, são promessas de ternura, carícias e pecados. O amor oculto percorre caminhos, trilhas, ama a natureza e é livre, solto, felino como uma tigresa. Como se veste o amor oculto? Roupas escuras? Calça jeans? Blusa amarela? Se é oculto, como dizer o nome dele ou dela? Como me surge esse amor oculto? De que jeito? Tem uma dália tatuada sobre o peito? Escala falésias? Dança conduzida pelos vinhos? Devora com prazer, muito prazer, a sobremesa? O amor oculto sonha como poeta e quase foi princesa. Quero que o seu sorriso e seu olhar me afaguem com a doçura e a delicadeza dos bombons da Kopenhagen. O amor oculto se esconde em montanhas, se perde na neblina, mas seu sorriso permanece e ilumina. É ninfa de patins dobrando a primeira esquina. O amor oculto surge, sem pedir licença, nas minhas horas matinais. E permanece pela tarde, pela noite, e quer mais, sempre quer mais. O amor oculto é tranqüilo, discreto, não gosta de palavrão, exceto os gritados nas horas desvairadas da paixão. É embriaguez em loja de louças, absinto em xícaras azuis. O amor oculto emerge de crateras, quimeras, vestido de luz. O amor oculto faz questão de não ser, não estar, não vir à tona. De repente, monta e grita e esporeia e cavalga como uma amazona.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Pablo Picasso)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A presença da poesia

Numa tarde de solidão quase infinita, a poesia surgiu diante de mim, me pegou pela mão e saímos juntos. Levou-me correndo para as falésias manchadas com o vermelho desbotado do anticrepúsculo, e eu percebi claramente que a poesia tinha corpo de mulher, ternura de mulher, magia de mulher. Beijou-me na boca, despiu-se e disse que queria ser amada não como usualmente se ama a poesia, mas como se ama uma mulher cheia de desejos. A poesia tinha uma cabeleira escura, os seios apontando para o infinito e os seus lábios tremiam. Começamos a trocar carícias e eu jamais poderia imagina que a poesia fosse tão bela, tão deslumbrante, quando se despe totalmente. A poesia me lançou nardos e dardos de doçura, gemeu e os seus gemidos foram tão fortes que, a muitas léguas dali, um homem à beira do suicídio despertou para a vida e escreveu uma ode ao amor. À nossa volta, gaivotas ficaram tontas de ternura, ensaiaram vôos acrobáticos e saudaram os amantes nas alvuras e alturas das falésias com seus gritos marinhos. Depois do crepúsculo, a noite demorou a chegar porque a tarde alcoviteira queria ver mais, ver mais. Na despedida, depois de tantos embates, desses que ficam gravados na memória como tatuagens, a poesia me disse algo que me deixou preocupado, em alerta. "Se você continuar preferindo ficar muito triste" - disse ela num sussurro, numa doce advertência - "eu não o visito mais. Tristeza cansa, meu amado." E logo depois saiu dos meus braços e eu me vi no alto das falésias, na solidão mais maravilhosa que um ser humano pode conhecer. Oito gaivotas pousaram nos meus ombros, me acariciaram com os seus bicos indiscretos e em seguida levantaram vôo, talvez à procura da poesia.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração "O Beijo" de Rodin)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Noturno só para Maysa


Liberto-me do dia
porque a noite desabrocha em pétalas de ópio
e cria uma distância íntima.
A noite penetra pelos meus ouvidos,
pelo meu sexo, possui-me
(pólen estéril apenas crescendo em dor)
e mostra, na metamorfose
da posse, a outra face
que procuro para caminhar só
entre os homens.
Sei da inexistência da aurora:
tímida rosa fecundada
longe de minhas mãos inúteis.
Sei das cores irreais da rosa
que se abrirá somente
quando a tocares de leve com o teu beijo.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Voz Geral, 1963, foto arquivo do Google)

domingo, 4 de julho de 2010

A gula

A gula brilha nos olhos grandes dos glutões, com o fulgor das gemas malpassadas. A gula mergulha e nada no frigir dos ovos, no ouro liquefeito do azeite de dendê, naufraga em molhos untuosos: bechamel. Na mesa, a gula rende-se à beleza trágica do leitão asfixiado por uma maçã. A gula trespassa com a língua e com os dedos a cobiçada virgindade das empadas. De noite, quando a lua é uma fatia de queijo no infinito, a gula toma a geladeira de assalto, em busca do último pedaço de camembert que se refugiou no frio, protegido por mortais mortadelas. A gula é docemente herética: adora papos-de-anjo, barrigas-de-freira, toucinhos-do-céu e a eternidade tecida em fios de ovos. Com olhar mendigo, a gula lambe os chocolates do hemiplégico. A gula se perde e se encontra em paisagens de sonho: montanhas de claras em ponto de neve, bosques de algodão-doce e alcaçuz, às margens de um lento e silencioso rio de leite condensado. Mel sobre panquecas, morangos soterrados pelo creme, nozes e amêndoas cobertas de calda de morango, o sabor e o perfume da baunilha sob camadas de mousse - eis os jogos de esconder da gula. A gula adora os lábios carnudos e trêmulos das gelatinas. Politicamente incorreta, ela alimenta o seu desejo mais intenso: omeletes de ovos de avestruz com recheio de corações de beija-flor no café da manhã. A gula se banha em cascatas de saliva. Carrega nos bolsos pegajosos de gordura o seu pecado capital. Não teme o inferno e suas amarguras de jiló. Rejeita a cozinha insossa do purgatório. E só admite um céu: o palatino.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Caravaggio)

sábado, 3 de julho de 2010

Relembranças

Lembranças de amores idos e vividos estão chegando e tomando lugar diante das teclas do computador. Minha primeira namorada se chamava Marinete e morava na Afonso Pena, bem em frente a um areal onde minha turma jogava pelada. Com quinze dias de namoro, Marinete permitiu que eu pegasse na sua mão. Mas o gesto foi visto pelo irmão, que deu queixa ao pai, que botou de castigo a namoradinha e a obrigou a acabar o namoro.
*
O primeiro beijo foi em São José de Mipibu, onde eu passava férias na casa do meu tio Miguel. Certa manhã, num beco que levava a uma entrada lateral da casa, uma menina da minha idade, cerca de 11 anos, se aproximou e me surpreendeu com um beijo na boca. Eu poderia fantasiar, romantizar o momento, mas sinceramente não gostei. O beijo tinha gosto de cuspe... Poucos anos depois, ainda em São José de Mipibu, namorei com Zizi, que tinha passado 30 dias de férias no Rio de Janeiro e chiava como gente grande. O que mais atraía em Zizi era o sotaque, quando ela falava djia, tchinha, tchitchia. Paquerei Zizi montado na bicicleta do meu primo e ela se rendeu à minha habilidade de ciclista. Com três dias de namoro, ela perguntou onde estava a minha bicicleta e eu lhe disse que a bicicleta não era minha. Zizi fechou a cara, deu uma rabissaca e me mandou andar, dizendo que não namorava rapaz sem dinheiro para comprar uma bicicleta.
*
Mas paixão, paixão mesmo, eu tive pela minha professora de francês do Atheneu. Ela era doce,tranquila, muito bonita. Nos meus doze anos, eu me sentava na primeira fila e ficava bebendo as suas palavras, doces palavras ditas em francês. Uma vez, ousei perguntar: "Professora, como se diz "eu te amo" em francês?" Quando ela disse, com voz sussurrante "je t'aime", eu tive certeza de que estava recebendo uma declaração de amor. A partir desse dia, eu sussurrava em suas aulas je t'aime, je t'aime, muito apaixonado. Foi ela quem me despertou a paixão pela língua francesa. Na Aliança Francesa do monsieur Bernard Alleguède, eu sonhava ter uma professora bela e apaixonante como aquela.
(Texto de crônica de Nei Leandro de Castro, foto de arquivo do Google)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Regatas

As quilhas dos ioles
cortavam como navalhas
o dorso do rio, a paz do rio
sob o azul dos domingos.
***
À margem esquerda,
o silêncio enlameado do manguezal,
um cheiro forte, um silêncio de morte.
***
À margem direita do rio,
estudantes e cafetões, putas e doutores
torciam pelo Náutico e pelo Sport.
(Poema de Nei Leandro de Castro, ilustração de Thomé Filgueira)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Mesa de bar confidente

Três homens, todos com mais de 60 anos, se reúnem quinzenalmente num bar do Tirol. Sentam-se em volta da mesa reservada para eles e são atendidos pelo dono do bar. Pelo que bebem, pelas viagens que narram, devem ter boas aposentadorias, mas não são ricos. Ricas são as aventuras que eles contam, bebendo calmamente suas doses de Old Parr, fingindo que não vêem as pessoas em volta. Um deles contou que, aos 59 anos, se apaixonou por uma menina 30 anos mais jovem do que ele. "Foi uma das mulheres mais sensuais e maravilhosas que conheci" - sussurrou. Seus olhos ficaram úmidos e ele pigarreou forte. E disse que a menina, bela e aventureira, havia passado uma temporada em Portugal e de lá guardara expressões que o levavam a surtos de ternura. Por exemplo: "Vem, fica-te ao pé de mim." Quando ele chegava pertinho dela, a menina o beijava muito, muito, e recitava de cor sonetos de Florbela Espanca. O apaixonado, que nunca fora um leitor de poesia, passou a ler todos os poetas ao seu alcance, para agradar a sua amada. O amor floresceu como lírios azuis, a ternura teceu todas as suas tramas com as cores do arco-íris, a vida pulsva no seu coração com a força de um exército em marcha. Numa noite de 13 de agosto, a menina veio ao seu encontro, no lugar de sempre, e disse, quase sem voz, com lágrimas turvando os seus olhos e a sua alma: "Eu sou noiva de um mineiro, vamos casar e morar no interior de Minas. Te amo muito, muito, não cante o coração com mais verdade, como disse o poeta. Mas vou-me embora." E nunca mais deu notícias. O boêmio, enxugando as lágrimas, concluiu dizendo aos amigos de copo, testemunhas de sua dor, que naquele 13 de agosto descobriu que não tinha vocação para suicida. ...
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Di Cavalcanti)

domingo, 20 de junho de 2010

O amor

Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.
- Te cortaram? - perguntou o homem.
- Não - disse ela. - Sempre fui assim.
Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:
- Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.
Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e deixou que lhe aplicasse as pomadas e os ungüentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:
- Não te preocupes.
Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A lembrança das frutas enchia sua boca de água.
Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:
- Encontrei! Encontrei!
Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma árvore.
- É assim - disse o homem, aproximando-se da mulher.
Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso de flores e frutas invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta a formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.
(André Marcel D'Ans in La verdadera Biblia de los Cashinahua, ilustração autor desconhecido da tribo Cashinahua)

sábado, 19 de junho de 2010

Canção de outono para Verlaine

Como folha que morre
e ninguém a socorre,
em passo lento
o bêbado perene
do pobre Verlaine,
ao relento
com frio e sono,
vaga pelas ruas
com as árvores nuas
do outono.
***
À luz de velas
em tasca de Bruxelas,
com absinto e morfina
afoga a solidão.
Ao som da viola louca
e com voz rouca
em surdina,
chora na canção
que fez para Rimbaud,
que o deixou
só, com seu amor
e sua dor.
(poema de Luis Carlos Guimarães in O fruto maduro, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Romance da Cidade de Natal

PREFÁCIO
Uma cidade não se abre
fácil, como um guarda-chuva,
a quem sequer não a tem.
Uma cidade é como a luva:
***
sem o gesto e a medida
exatos de quem a calça,
jamais se entrega a alguém
por mais força que se faça
***
para tê-la ou possuí-la.
Pode tê-la, mas sem uso,
simples adorno ocultando
a sua alma ao intruso.
***
Mas possuí-la, através,
de um exercício constante
de amor e contemplação
é ver o quanto de amante
***
uma cidade esconde em si.
Ao menor gesto, qualquer,
que venha de quem a ama,
ela transcende: mulher.
***
Mulher lânguida que, amada,
mais ama além, sobre a dor.
E nos devolve em silêncio
o que lhe damos de amor.
***
Silêncio que pensa no homem
o seu ingênito pasmo,
como a paz que nos oferta
a mulher depois do orgasmo.
***
Natal não foge à regra
que a experiência assinala.
Íntima, entre o rio e o mar,
se estende. Convém amá-la.
(poema de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Matinê do Cinema Rex

Foi na tela ou na platéia
Foi verdade ou ficção?
O menino não consegue
responder essa questão?
O filme já começado,
Tom Mix herói, bonito,
a mocinha suspirando,
que coração mais aflito.
A emoção bate nas têmporas,
um lugar vazio ao lado.
Uma mulher perfumada
ocupou aquele espaço
e alguns minutos depois
(Tom Mix briga tão bem!)
faz carinho no seu braço.
Depois levou o carinho
para o sexo endurecido,
enquanto o caubói brigava
com três ou quatro bandidos.
Veio a explosão do gozo
mais forte do que os socos
do herói destemido, audaz.
A mulher se levantou
e se foi pra nunca mais.
(poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia)

terça-feira, 15 de junho de 2010

A lua das raposas

"- Quando eu vejo a lua assim desse tamanho e todo mundo olhando pra cima e dizendo que lua mais bonita, eu não acho nada de boniteza nela, porque essa desgraçada só tem me feito sofrer, desde menino. Então, inda não contei? É bom começar do começo. Em noite de lua todo mundo sabe que corre muita raposa doida. No tabuleiro onde a gente morava, nem se fala, tinha noite que a gente matava dez, vinte raposas, juro por Deus. Muita raposa, sim. Basta dizer que nossa casa, que não tinha riqueza mas era grande, com seis quartos e muito alpendre, era toda forrada com couro de raposa. Forro no chão e na parede. Meu pai foi um grande matador de raposa doida. Pois foi numa noite dessa de lua amojada que uma raposa entrou lá dentro de casa e eu, com dois anos de idade, estava brincando e nem dei fé que a bicha vinha me estraçalhar. Só que meu pai foi mais ligeiro: pegou a bicha pelo pescoço e começou a lhe dar uns baques, cada qual o mais forte, capaz de matar um gato. Contei quarenta e duas quedas. Como? Pergunta mais besta. Então você não está cansado de saber que lá em casa com dois anos todo mundo já sabe a taboada de cor e salteado? Mas deixe contar a história ou então não conto mais. Como eu ia dizendo: depois de levar quarenta e duas quedas do meu pai, não é que a danada se fingiu de morta? Foi meu pai dar as costas pra ir buscar o facão modo tirar o couro dela, a infeliz me abocanhou bem aqui, pode ver, arrancou um naco de minha perna. Não queira nunca levar mordida de raposa doida. A desgraçada mordeu e acabou de morrer, também com tanto baque, né? Mas deixou a ferida saindo sangue de seringada, me lembro como se fosse hoje. Nisso o meu pai, com licença da palavra, verteu água em cima do sangue, que é o melhor remédio pra mordida de raposa doida. Tive febre de quarenta graus quase um mês, minha mãe já pensando que não ia me criar. Escapei, tou aqui vivinho contando a história, mas não gosto de lua cheia, sabe por quê? Toda vez que a lua fica grandona assim, a ferida da perna se dana pra doer, me dá febre, formigamento no corpo, zoada nos ouvidos e uma vontade danada de sair pelos tabuleiros matando galinha de dentada.
- Mentiroso!
O galego Assis levantou-se da cadeira tão ágil quanto uma raposa:
- É a puta que pariu!"
(texto de Nei Leandro de Castro in O dia das moscas, foto de Mário Meir)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Eros

Eros nasceu do Caos - é o que dizem.
Outras fontes o apontam
como resultado de uma homérica suruba.
Seria filho de Íris ou de Ilítia
ou de Artemis Crônia com Hermes.
Outra versão: filho de Afrodite
(Afrodite era fogo) com Hermes.
O poeta não tem nenhuma obrigação
de saber essas mitologias todas.
Só sabe que nos puteiros romanos
Eros era conhecido como Cupido
e tinha o pênis assim pequenininho
como de um anjo barroco.
(poema de Nei Leandro de Castro in Era Uma Vez Eros, pintura de Baudry)

domingo, 13 de junho de 2010

O pastor e a flauta

A flauta entre os seus dedos era infância
relembrança de azul, verde rebanho
repousando nas águas o cansaço
que o pôr de sol deixava em suas lãs.
***
Era música andando na distância
perdida das colinas. Era banho
de orvalho no silêncio do céu aço
forjado pelo fogo das manhãs.
***
Era vestígio de mulher ausente
feita de lã e paz, sol e canção
(que jamais nos virá: só se pressente).
***
A flauta era saudade e já não era:
morto o pastor, a bôca e os dedos não
mais inventavam sóis de primavera.
(poema de Nei Leandro de Castro in O Pastor e a Flauta, 1961 - quadro de Renoir)

sábado, 12 de junho de 2010

Antônio de Castro

Nos anos 40, em Caicó, um tenente da Polícia saiu à frente de uma tropa à procura de um assassino perigoso. O bandido, que tinha muitas mortes nas costas, foi localizado entre uns lajedos e começou a atirar. Depois de intenso tiroteio, o matador se rendeu: tinha um ferimento no braço e sangrava muito. Os solddos tomaram a arma dele, improvisaram uma atadura e iniciaram a caminhada de volta para a cidade. A certa altura, sob um sol de rachar moleiras, o bandido começou a se queixar de sede. O tenente sabia que os feridos a bala sentem uma sede imensa, quase mortal. No meio do caminho, ao avistar um casebre, o tenente resolveu pedir água para o prisioneiro e ordenou que ele o acompanhasse. De repente, o grito de um soldado: "Cuidado, tenente!" O oficial se virou e viu que o criminoso havia retirado uma peixeira escondidaem algum lugar do seu corpo. Não houve tempo para nada. O bandido levantou com as duas mãos a faca de doze polegadas e cravou-a no próprio peito. Ninguém o teria impedido de assassinar o militar.
O tenente voltou para Natal, fez carreira na PM e foi reformado como coronel. Ele costumava contar essa e outras histórias a seus filhos, que eram oito, na pequena casa da rua Professor Zuza. Como um oficial da Polícia, que cultivava a honestidade e a honradez, podia sustentar uma família tão numerosa? Não era fácil, mas era possível. Criativo, incansável, ele abriu uma fábrica de sabão no quintal dessa casa e à noite e nas folgas do quartel, com o auxílio de dois ajudantes, fabricava um sabão de boa qualidade e preço baixo, preferido por todas as lavadeiras dos arredores. O coronel Antônio de Castro era também um leitor assíduo e atento - um caso raro entre os seus colegas de farda. Trazia para a mesa os seus autores preferidos e citava trechos e mais trechos de memória. Encabulava a recatada esposa quando recitava os versos fesceninos de Bocage, um dos poetas que ele mais admirava.
Foi o coronel Antônio de Castro quem me apresentou a um romance de Jorge Amado e me induziu, irremediavelmente, ao vício da leitura. Tenho uma lembrança muito nítida dele, sentado numa cadeira de balanço, lendo um livro volumoso de capa verde. Fiz perguntas e ele me disse que aquela não era ainda leitura para mim e que fizesso o favor de não ler o livro às escondidas. Um dia, não resisti, dei uma olhada e descobri que o livro, em muitos volumes, tinha o título de Memórias de Casanova. Mesmo dominado pela curiosidade, não tive coragem de me aprofundar na leitura. O coronel não admitia insubordinação.
Muitos anos depois, num sebo do Rio de Janeiro, eis que me deparo comos dez volumes das memórias, cheias de conquistas amorosas, erotismo e aventuras, de Giacomo Casanova de Seingalt. Comprei na hora esses livros que me emocionam até hoje, porque me fazem lembrar, com muita clareza, um homem corajoso, cordial, íntegro, inteligente e muito amoroso com sua mulher, dona Alice, e com seus filhos. Modéstia à parte, Antônio de Castro era o meu pai.
(crônica de Nei Leandro de Castro publicada na Tribuna do Norte)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Soneto das variações

Branca praia da minha adolescência
absorta em breves flores de canção.
Calaram-se meus ecos luminosos
de crença numa Estrela da Manhã.
***
Branca praia perdida na falência
de infante mundo, azul contemplação,
fendeu-se em mil detalhes pantanosos
bebenda a minha Estrela da Manhã.
***
Não mais a branca praia como outrora
-festa de búzios com risos de lua
no meu encantamento de menina.
***
Pesada e real, diversa é a praia agora:
se toda eu quero inteira a areia, o mar,
afogo os meus desejos na retina.
(Poema de Zila Mamede in Rosa de Pedra 1953, foto de Sandra Porteous)

domingo, 30 de maio de 2010

Canção de amor

Eu não pensei que o amor fosse tormenta,
incisões na pele, tatuagem na alma
e um tremor que toma conta de todos os espaços
em volta do nosso ventre, Jesus.
Eu não podia avaliar que o amor era Tanatos
nos levando nos seus braços de espinhos
e adiando, por falta de compaixão, a nossa morte.
Nunca pude perceber que o amor
fosse uma formação de nuvens negras, de cheiro forte,
agora e na hora de nossa morte, amém.
***
Descobri o amor, senti que te amava
com a ternura dos cisnes e o furor dos genocidas,
quando partiste.
(Poema de Nathália de Sousa in Poemas Devassos e uma Canção de Amor, foto de Sandra Porteous)

sábado, 22 de maio de 2010

Ouve, amada

Ouve, amada, o som da flauta desvirginando a manhã.
É o que a minha alma tem de mais mística e de pagã.
***
Ouve, amada, a sístole do tambor enquanto a vida segue.
É o meu coração que não sabe ser triste nem alegre.
***
Ouve, amada, um fio de som na noite fria, outonal.
É o cantochão da minha tristeza de vidro e de metal.
***
Ouve, amada, a música festiva na pequena praça da cidade.
São os guizos do meu amor, minha ternura com alarde.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Junqueira Aires 371

No casarão de onde se vê o rio
e o casario da velha Ribeira,
o homem insone, de vasta cabeleira,
olhos gastos de tantas mil leituras,
viaja em muitas páginas.
Transforma a aridez das pesquisas
em doce erudição, novos mundos,
portas abertas: Áfricas redescobertas
por caminhos nunca dantes percorridos,
redes de dormir com varandas para o infinito,
Mula sem Cabeça, Saci e Lobisomem,
Civilização, a Grécia como fonte e estuário,
Caipora e Papangu, o sorriso e o grito
que há no fundo do nosso imaginário.
***
O homem, que vai passar mais uma noite insone,
em rica solidão, rico silêncio, sabe de tudo.
Viaja em torno de si mesmo, em seu oceano,
na circunavegação de Luís da Câmara Cascudo.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia Poemas)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Solo desafinado para Nei Leandro

Quero o poema tão claro
nas coisas que pretendo dizer,
que na viagem da noite
pelos caminhos da madrugada,
ao falar na manhã que vai chegar
todos vejam o dia acabando de nascer.
***
E quando o poema fala de amizade,
saibam de que amigo quero falar.
Amizade que existe e para existir
tem trutas atravessadas na garganta,
contradições, mágoas, desencantos,
e não se cansa, sempre recomeça.
***
Verão de um calendário só dezembros
andando nos caminhos da madrugada,
manhã acabando de nascer
no grito amarelo dos cajus,
se reencontra no primeiro abraço
do ontem de hoje e depois de amanhã.
***
Não descompassou o coração nas alturas
quando viajou mundo pela mão do amigo.
Solo de pandeiro, cuíca e violão,
amizade que distribui o pão
e a mostarda da alegria,
bebe tristeza se o vinho faltar.
***
Amizade de lágrimas repartidas
num velho filme de Frank Capra,
antenas ligadas no cio da noite,
no bar Acácia descobriu a poesia
no fogo brando do primeiro conhaque,
no ouro amargo de uma cerveja Brahma.
***
Parentesco maior que o do sangue,
a amizade existe, sempre existirá.
Como quero o poema tão claro
nas coisas que pretendo dizer,
ao falar de amizade todos pensem
no amigo Nei Leandro de Castro.
(Poema de Luís Carlos Guimarães, publicado na Tribuna do Norte em 24/08/1986)

segunda-feira, 29 de março de 2010

Feijão à João Ubaldo

Na única exceção deste volume,
aqui vai um soneto em rima rica
que com muito prazer agora assume
o saber do ermitão de Itaparica.
***
Cozinhe n'água e sal todo o feijão,
escorra bem os grãos feitos ao dente.
Alho, cebola, o seco camarão
no dendê são dourados lentamente.
***
Despejar o feijão no refogado
e ajuntar mais um pouco de dendê
até que fique tudo besuntado.
***
Agora vem um toque bem maneiro:
misture o camarão fresco e você
vai dar um viva ao povo brasileiro.
(Poema de Celso Japiassu e Nei Leandro de Castro in 50 Sonetos de Forno e Fogão, foto Sandra Porteous)