quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Feijão Tropeiro

Nas estradas de Minas se criaram,
ao sabor do improviso, muitos pratos
que honram a cozinha brasileira.
Este feijão famoso é bom exemplo.
***
Cozinhe os grãos somente n'água e sal,
cuidando que eles fiquem meio duros.
Leve o toucinho ao ponto de torresmo,
depois frite a linguiça na gordura.
***
Numa panela à parte, frite os ovos,
ponha cebola, sal, pimenta e alho,
misture os ingredientes com farinha.
***
Se o seu colesterol está em alta,
convém fugir correndo do tropeiro,
embora valha a morte em gozo extremo.
(Celso Japiassu e Nei Leandro de Castro in 50 Sonetos de Forno e Fogão)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A canção de amor

O amor implode e a explosão
vai direto ao coração, para multiplicá-lo
como os pedaços de metais de uma granada,
romã caindo sobre um pátio de colégio
de freiras, numa sacrílega manhã.
O amor. Não procure apreendê-lo de estalo.
O amor, eu o fecundo nas trompas inflamadas
da mulher amada que está gritando
todos os plurais em ais.
Só o amor faz escrever versos de amor
e na prisão, a pão e água estagnada,
alguém prende aquela triste e leda madrugada
nos dedos. A rima dos versos é uma água no cio
que nasceu para ser cavalgada, emparelhada.
Parênteses: de repente dá vontade
de escrever: berceuse. Ou de dizer: boceta.
O amor está presente e se insinua
como o desejo de uma mulher grávida
que quer comer sua placenta crua.
O amor, coitado, sempre foi rosa nos versos
dos adolescentes com febre de sonetos
mas na minha canção, não,
ele jamais será tratado como tal.
Prefiro a paz nas alturas de uma nave espacial.
O amor está feliz numa sarjeta
e chafurda na poça que não reflete nada:
os pombos do poema há muito já se foram,
morreram de velhice, e a lua é uma frase de efeito
que já não brilha. O amor se basta em sua lama
e basta. O amor rompeu com a tirania lapidar
e quer somente cumprir o seu destino de semente,
um grito amargo, lisérgico, com contra-indicação
para os tiranos e os alérgicos.
O amor retumba na cabeça e é dor ciática, reflexa,
que intumesce a glande e cora os grandes lábios.
De repente, o amor se aninha entre lençõis
e já não dói. Mas é preciso guardar a sua chama
para o amor não esfriar como lábio do morto
ou o lado direito da cama onde pousou
o corpo de quem ama, o corpo de quem ama.
O amor do outro lado
está desintegrado em monóxido de carbono.
Veja: os abandonados que esperam em vão
no ponto da esquina vão respirando fundo,
lentamente, como quem aspira a morte.
E contra o amor em passeata, amor,
eles detonam gás lacrimogêneo,
cavalos investem no passeio, morre sob patas
uma mulher que não protege os seios.
O amor está no hospício tratado como vício.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez Eros, foto de imagem do Google)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Pra não dizerem que deixei de ser romântico e sensual

Brinco de compor teu corpo inteiro,
teu corpo claro mistério
em jogos de luz e sombra.
A haste do pescoço sustenta a flor do rosto
que bebe na seiva da região dos seios
onde formas arredondadas se eriçam: arrepios.
Um fio a prumo invisível desce do umbigo
ao abrigo das carícias, todas, lembradas
em manhãs e madrugadas. Claridade.
Ouso compor a maciez do púbis castanho,
escargots de pêlos que se aninham
à sombra da pele muito branca. Ali,
o pássaro-pássara do meu desejo
de plumagem molhada às primeiras carícias
ou aos sussurros que supõem a delícia
de amar, fazer amor, fazer doçuras,
doces loucuras, bagunça, estripulias
que você nem lembra se já fez um dia.
O retrato visto de outro ângulo, subjetivo:
o prazer da entrega que sobe dos pés,
ergue-se pelas colunas macias das coxas,
envolve o sexo e o torna umedecido,
vem linha reta até a boca, flor e sexo,
e se completa na luz e sombra desses olhos
que prometem jogos intensos de ternura,
tesão e travessias travessuras.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, ilustração de Modigliani)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O sortilégio do mar

Vou fugir de mim mesmo.
Refugiar-me na sombra do mar.
Vou morar no seu silêncio
e beber meu olhar de sono
nas calçadas que perfuram o mar.
Levarei comigo
um piano cheio de escuro.
***
Quero sentir o frio horizonte
que se estende sobre o mar.
Fender meu corpo de disfarce
na luz que ilumina os frutos do mar.
Quero que me limitem entre os círculos,
azuis ou verdes, e a imagem
do crepúsculo, incendiado no mar.
Arqueadas estão as minhas mãos
nas suas redes, de súplica,
sossobradas. Mar,
espelho irremediável
de solidão, refletindo as faces
descomunais da minha única face
translúcida.
(Poema de Sanderson Negreiros in Fábula Fábula, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Caldo de cabeça de peixe

Lave a cabeça, esfregue com limão
e ponha em caldeirão de bom tamanho.
Acrescente dois litros d'água fria
com tomates, cebola, cebolinha.
***
Azeite, sal a gosto, coentro e salsa
vão completar a parte dos temperos.
Cozinhe em fogo leve, reduzindo
o caldo até ficar pela metade.
***
Passe por um coador o caldo quente,
nele despeje o molho de pimenta
e cachaça de boa qualidade.
***
Esta receita faz o casamento
perfeito da cachaça com o peixe,
que nunca poderão ver-se apartados.
(Poema de Celso Japiassu e Nei Leandro de Castro in 50 Sonetos de Forno e Fogão, ilustração de Di Cavalcanti)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Uma viagem no tempo

Os limites da cidade iam até a Avenida 15 (Bernardo Vieira), onde havia um posto fiscal, chamado Corrente, que fiscalizava saídas, entradas e bandeiras. A pista de asfalto, construída pelos americanos durante a Segunda Guerra Mundial, serpenteava entre dunas, silêncios e verdes até Parnamirim. Os outros limites, a leste e oeste, tinham mais esplendor: o rio Potengi e o mar de águas mornas.
Nas marés altas, os botos vinham brincar nas águas do Potengi. Nas marés cheias de medo, diziam alguns, os cações faziam expedições, furiosos, famintos, cortando as águas com a lâmina de suas barbatanas. Os meninos pescavam morés, pulavam da Pedra da Chapuleta ou desafiavam os cações, fazendo torneios de cangapés no meio do rio.
O mar era um latifúndio azul-turquesa ao alcance de todos. Perto da Fortaleza dos Reis Magos, estrela dos lusíadas, pétrea sentinela, havia o Poço do Dentão, com suas grutas, seus mistérios, sua inexplicável profundidade à beira-mar. Itamar, que depois seria personagem de romance, jurava de pé junto: numa das grutas do poço, havia um tesouro escondido pelo pirata Riffault. Todos os dias, os meninos pobres mergulhavam à procura da arca cheia de ouro e pedras preciosas. Viviam desse sonho.
Perto da Rua da Estrela, morava uma viúva sem filhos, jovem e bonita. Não saía de casa, não cumprimentava ninguém, não devolvia a bola que caía nos seus domínios. Numa tarde, os meninos olhavam pelas brechas do portão, em busca de mais uma bola perdida, quando surgiu um daqueles alumbramentos de que fala Manuel Bandeira. A viúva brincava com seu cachorrinho, dançando e levantando a saia para o animal, que corria à sua volta. As coxas eram roliças e a calcinha, ai!, era de cor clara. Naquele dia, houve jogos olímpicos em homenagem a Onan.
Nas matinês do cinema Rex, nossos sonhos cavalgavam na garupa do cavalo do Zorro. Ajudávamos o herói a esmurrar o vilão e também queríamos beijar a mocinha, mas isso o amigo de máscara negra não permitia. Tão difícil quanto beijar a namorada do herói dos seriados era beijar a namorada de verdade. O namoro tinha suas regras rígidas: com duas semanas, ela permitia pegar na mão; com três semanas, um beijo no rosto; com um mês, um beijinho na boca, mas nada de prospecções de língua. A mocinha que permitisse mais do que o estabelecido corria o risco de ficar falada.
Bons tempos, mesmo com essas restrições. As ruas descalças, o rio, o mar, os vastos espaços nos levavam a descobertas, aventuras, saudáveis estripulias. Desde cedo, os meninos aprendiam a desafiar perigos. Havia mendigos valentões, que odiavam os seus apelidos e poderiam ferir gravemente um daqueles pirralhos com uma pedrada certeira ou um murro no pé do ouvido. Mas nenhum mendigo podia passar perto da turma, sem ouvir o seu apelido gritado em coro. "Caju Azedo! Cadê a castanha?", ele dizia que as nossas mães, coitadas, guardavam a castanha num lugar muito reservado lá delas... Ah, Natal da minha infância, gaveta de sonhos, território das minhas grandes amizades.
(Crônica de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela, foto do Forte dos Reis Magos de Sandra Porteous)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Manhã de verão

No retângulo da sala
as paredes brancas
em pintura de cal
recente. Mais brancas
na semeadura de luz
da manhã de verão
em dezembro. Tão de luz
castigada que o antes
transparente ar, denso,
inunda o espaço: bloco
de peso não medido:
claridade prisioneira
entre teto e piso
e paredes da sala:
ar e luz palpáveis
em serem compactos
na vertigem do sol:
dezembro, dezembro.
(Poema de Luis Carlos Guimarães in A Lua no Espelho)