quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Amar/Armar

Força, amor, para que o medo
não seque nossa saliva
como seca o leite dos rebanhos.
Força, amada, para que seja apenas transitória
a maquilagem de clown que arrodeia
nossos narizes vermelhos pelo choro
em memória dos meus e dos teus mortos.
A alvaiade que clareia e falseia nossos risos
deve servir depois para inscrições
de todas as palavras que não ousamos
escrever nos muros escuros desta noite.
Antes, amor, cuidado: é necessário
despistar o faro da matilha
com o suor das axilas, do sexo,
dos nossos corpos emaranhados,
quarenta graus à sombra.
E não temas se um dia as tuas mãos
de repente forem postas para cima
espalmadas contra a parede, enquanto
cães de fila farejam a tua mente.
As granadas são guardadas na cabeça
de cada um de nós.
(Poema de Nei Leandro de Castro in CantoContraCanto, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Circo da Madrugada, Paris

Uma pausa no riso e na alegria
para se sentar à mesa, ao meio-dia.
(Texto Nei Leandro de Castro, foto autor desconhecido)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Ars poetica

Ah, definir a poesia
de uma maneira
tão simples e bela
que as pessoas
repitam a definição
como se fosse delas.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, foto de Sandra Porteous)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Diário de Viagem

Os espelhos florentinos
fesceninos espreitavam
ela penetrada em mim
e eu penetrado nela.
Do portal atrás de nós
o outono derramava
uma claridade amarela.
Contra essa luz fixei
a suave nudez dela:
o sexo recém-lambido
e seus seios de donzela.
Nossos gemidos eram altos
como os sinos da Igreja
de Santa Maria Novella.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez eros, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Amor a Roma

Mais duradouros que as pedras dos monumentos, na quase totalidade destruídos, durante séculos, são os versos, os discursos, os pensamentos, as leis, as narrativas históricas dos romanos. Os monumentos intelectuais, expressos em palavras, resistiram a todas as destruições e mudanças. Tudo consome a poeira do tempo, exceto as idéias que germinam nas sementes das palavras, reunidas nas espigas das frases, multiplicadas nas searas das obras fecundas. No barro, na pedra, no papiro, no bronze, no pergaminho, no papel, as palavras-sementes fazem germinar as idéias, que vão e voltam, mas não morrem, que aplacam sofrimentos, enlevam espíritos, arrebatam consciências, conformam a conduta, incendeiam multidões.
(Texto de Afonso Arinos de Melo Franco em Amor a Roma, foto de Sandra Porteous)

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Alma das ruas cariocas

Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, esplinéticas, esnobes, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes que ficam sem pinga de sangue.
(Texto de João do Rio, foto de Sandra Porteous da Rua Aprazível em Santa Tereza)

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Dois Poemas de Florença - Santa Trinità

Na ponte Santa Trinità
uma bela menina florentina
de pernas longas, saia curta
e um lindo sorriso
aguarda que um Dante lhe aponte
os caminhos do inferno e do paraíso.
(poema de Nei Leandro de Castro, foto Sandra Porteous)

Dois poemas de Florença - Ponte Vecchio

Ao pôr-do-sol em Florença
o ouro das ouriversarias
da Ponte Vecchio
cai sobre o Arno que se arrasta
e sente frio
e que até então
estava triste
em sua solidão de rio.
(poema de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

sábado, 24 de outubro de 2009

Paris em pedaços

O sol do outono torna Paris ainda mais bela. O frio pede agasalhos, mas não é sacrifício caminhar pela margem esquerda do Sena, ao lado das pequenas bancas dos "bouquinistes", sob as bênçãos da catedral de Nôtre-Dame, uma das mais belas igrejas do mundo. Ali adiante estende-se a Pont Neuf que, apesar do nome, é a ponte mais velha sobre o Sena. Sem pressa, o caminhante vai alcançar o Museu d'Orsay e o Louvre, com suas imensas, impressionantes coleções de arte. Se o cansaço se insinuar, basta entrar em um dos barcos que fazem pequenas excursões pelo rio e pode deixá-lo bem perto da Torre Eiffel, uma ousadia arquitetônica, lança apontada contra o céu de outono. A Paris que amo é assim e também as caminhadas por suas ruas estreitas, o prazer e a arte da gastronomia, bons vinhos mas não necessariamente muito caros, descobertas de coisas simples que não estão nos guias de turismo.
(Nei Leandro de Castro - crônica publicada na TN em 23/10, foto Sandra Porteous)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Despertar em Florença

Cedo, os sinos, sinos, sinos de Santa Maria Novella
despertam os nossos sentidos.
Um novo dia para renovar a paixão
que sobe das ruas com seus ares seculares.
Ruas palmilhadas por Da Vinci, Michelangelo
e por Masaccio, um gênio que descobriu a morte aos 27 anos,
não sem antes guiar Adão e Eva na sua saída
quase honrosa do paraíso.
Florença, renascença de amor e arte
para sempre gravada nos nossos sentidos
despertados pelos sinos, sinos, sinos de suas igrejas.
(poema de Nei Leandro de Castro, Foto de Sandra Porteous)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

A Coruja de Minerva

"Quando a filosofia pinta cinza sobre o grisalho, uma forma de vida já envelheceu e, com o cinza sobre cinza não se pode rejuvenescer, apenas conhecer; a coruja de Minerva alça seu vôo somente com o início do crepúsculo."
(Georg Wilhelm Friedrich Hegel, foto Sandra Porteous)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Pipa 2009

"Mas as coisas lindas
Muito mais que findas
Essas ficarão."
(Carlos Drummond de Andrade, foto Sandra Porteous)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Prefácio do Rio

Quero arrancar
o leite da poesia
de tuas pedras
como:
o catador que descobre
o ferro e o cálcio dos monturos,
o amante que faz prospecção
do leite vaginal,
o menino que extrai
o difícil espinho,
o cafetão que arranca
a féria da noite,
o solitário que retira de si mesmo
a aventura,
quero o teu lodo e a tua alma
essenciais como a um peixe
em súbito surto de asma,
quero chafurdar na tua alma
de asfalto, quero-te
cidade amaldiçoada pelos ventos podres
que descem das favelas,
quero romper-te como quem rompe
um túnel ou uma nuvem de monóxido
de carbono ou mergulha
de corpo inteiro num rio poluído
rio branco, rio,
rio na tua noite devassada
pela intimidade dos bares,
com o penúltimo bêbado, aquele que pede
sua dose única (a saideira) de cicuta
e por amor lhe é negada.
Rio de Janeiro, agora és dezembro
e és jogo fútil de palavras
para todos os meses da folhinha
e é chegada a hora deste invasor,
deste falso tímido (que exibe
a carteira profissional de tímido
para não fazer declarações de amor),
está na hora de declarar
o meu desvario e amor por ti,
cidade hermafrodita como um cristo,
amarga e granítica como
um pão de açúcar, cidade
de joelhos separados, de boca úmida,
mulher túmida,
intumescente,
virgem deflorada por uma flecha,
hímen complacente, hino de mentira,
sol & mar, amor & ódio,
lugar comum.
(poema de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

domingo, 20 de setembro de 2009

O bruxo do Cosme Velho

Quando a noite é íntima e profunda
como um conto,
o bruxo passeia sua melancolia
pelas ladeiras do Cosme Velho.
Os óculos se apóiam no nariz,
que se apóia no bigode branco,
que esconde o vestígio da pele escura
e o ríctus da epilepsia.
Por trás dos óculos, o bruxo
tem um olhar de dor e ironia
ao ver as antigas chácaras
estioladas pelo cimento armado,
ao ouvir o pedido de socorro do rio antigo
hoje riacho em estertor.
Na impossibilidade de colher
as últimas flores dos quintais do bairro
- restos arrancados dele mesmo -
o bruxo marca com o compasso
do seu coração e da bengala
a métrica de um soneto
para a mulher amada e a cidade
desaparecidas.
(in Diário Íntimo da Palavra, Nei Leandro de Castro. Foto de Sandra Porteous)

sábado, 19 de setembro de 2009

Antiga sabedoria, um tanto cósmica

So-shu sonhou, E tendo sonhado que era um pássaro, uma abelha, e uma borboleta Pensou com seus botões para que procurar sentir-se como qualquer outra coisa. Daí sua satisfação.
(Ezra Pound, foto Sandra Porteous)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A criança nova

A criança nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
(trecho de O Guardador de Rebanhos, Fernando Pessoa. Foto de Sandra Porteous)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Rendeira

"Uma profissão humilde e linda é a da nossa rendeira, tecendomaravilhas de delicadeza e equilíbrio nas almofadas toscas, no jogo mecânico dos bilros de pau. São artífices em ambientes paupérrimos, conseguindo obras primas que encantam os olhos estrangeiros."
(Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro - Foto Sandra Porteous)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Jardim Botânico

Conhecemos durante as idades, muitos jardins, desde aquele, talvez o mais longe: Um jardim com tantas flores qual delas escolherei? Mas "o que fica" é o que nos deu companhia na juventude, silêncio e cisma, numa ponta de banco que parecia estar esperando por nós a hora em que chegávamos. Dali partíamos para todos os futuros... Uma tarde (os futuros são passados), voltamos. Os portões vão se fechar. O jardim é o mesmo. A ponta de banco é a mesma. Bem-aventurado quem lhes pode dizer:-Obrigado, meu jardim. Obrigado, minha ponta de banco.
(texto de Álvaro Moreyra, in As Amargas, Não..., foto Sandra Porteous)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Nada muda

"Em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices."
"O governante que se preocupa demais com o espelho acaba vendo apenas a si próprio."
(Nelson Rodrigues)
"Há sujeitos que vendem sua alma e vivem muito bem com a consciência que lhes resta"
(Logan Pearsall Smith)
"Primeira coisa a fazer: matar todos os advogados."
(William Shakespeare)
"A burocracia é um terreno fértil: permite plantar funcionários e colher impostos."
(Jules e Edmundo de Goncourt)
(in O PODER de mau humor de Ruy Castro)

sábado, 5 de setembro de 2009

Jardim Atômico

Me entristece um jardim atômico
Cresce floresce
Em meio ao Universo
No avesso reverso
Do meu verso
Cynthia a cintilar
E a brincar com as conchas do mar.
(poema de Bosco Lopes, foto Sandra Porteous)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Ser e não ser

Não posso mais pensar,
o pensamento dói.
Se eu tivesse entre as mãos
um crânio escarnado
(despojado do pensamento,
dos olhos, da metafísica
da calvície ou dos cabelos),
entre ser e não ser injusto
eu preferia jogar com ele
uma brilhante partida de futebol.
(Nei Leandro de Castro, foto Sandra Porteous)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Canção de Outono

Os soluços finos
Dos violinos
Do outono
Ferem meu peito
Fico desfeito
E tenho sono.
(trecho do poema Canção de Outono de Paul Verlaine traduzido por Nei Leandro de Castro, foto Sandra Porteous)

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A Fortaleza dos Vencidos

De repente, sem nenhum aviso, o céu ficou escuro como os cabelos pintados da madame Cibele. Ela comparou a formação de nuvens com as tempestades interiores que a assaltavam de vez em quando, que estavam começando a inquietá-la. A chuva desabou sobre o mar e foi chegando, bela e assustadora. Os moleques que tomavam banho na praia saíram da água, tentando fugir, mas a chuva os alcançou e bateu em suas cabeças com pingos duros como cascudos. Já era tempo de chover, pensou madame Cibele, o calor estava de derreter o juízo,ao sol do meio-dia fritava-se carne de sol no calçamento.
(trecho do novo romance de Nei Leandro de Castro A Fortaleza dos Vencidos, foto Sandra Porteous)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Maternidade

(foto Sandra Porteous)

domingo, 5 de julho de 2009

Bolero

O amor se refletia
nos olhos claros da amante
em chamas de desespero
em clarões de diamante
na noite escura, absurda
infinita e agonizante.
(trecho do Bolero in Diário Íntimo da Palavra, Nei Leandro de Castro, foto Sandra Porteous)

sábado, 4 de julho de 2009

O Fígado do Jaguar

Em homenagem aos 50 anos de arte e boemia do cartunista JAGUAR.
Eu não quero os milhões que Maluf
malufou nos bancos da Suiça.
Não quero Camila Pitanga me dando colinho
até que eu fique com sono e com preguiça.
Eu não quero Deborah Secco molhadinha
sem calcinha, de fardinha escolar.
Eu quero, por favor, eu quero tanto
ter um fígado como o do Jaguar.
Não quero ter a mangueira do bombeiro
que apagou o lume da Oliveira.
Não quero estar na cama com Gisele
e o DiCaprio só filmando, de bobeira.
Não quero os milhões do Ronaldinho
nem a Juliana Paes para ser meu par.
Eu quero, por favor, eu quero muito
ter um fígado como o do Jaguar.
Eu não quero os poderes do Obama
nem o avião de marajá do presidente Lula.
Não quero brincar com Angelina Jolie
de mexe-mexe ou de pula-pula.
Do brigadeiro eu não quero o céu,
do almirante eu não quero o mar.
Meu amigos, meus inimigos, eu quero
ter um fígado como o do Jaguar.
Nei Leandro de Castro (foto Sandra Porteous)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Anotações de leitura

"Que há de mais extravagante do que adular covardemente o povo para ser benquisto, comprar seus favores por liberalidades, buscar com ardor o aplauso de tantos loucos, embriagar-se com tantas aclamações tumultuosas, deixar-se levar em triunfo como as imagens dos deuses ou fazer-se elevar como estátua em meio ao mercado para ser visto pela populaça? Esses nomes, sobrenomes, todas essas honrarias divinas prestadas a gente que não merece sequer o nome de homens, todas essas apoteoses públicas em favor dos tiranos mais odiosos, todas essas coisas, dizem os filósofos, não são loucuras ridículas que deveriam ser sempre desprezadas?"
*********
"Ora, o que é a vida? É uma espécie de comédia contínua em que os homens, disfarçados de mil maneiras diferentes, aparecem em cena, desempenham seus papéis, até que o diretor, depois de tê-los feito mudar de disfarce e aparecer ora sob a púrpura soberba dos reis, ora sob os andrajos repulsivos da escravidão e da miséria, força-os finalmente a sair do palco. Em verdade, este mundo não é senão uma sombra passageira, mas assim é a comédia que nele representamos todos os dias."
*********
"A verdadeira prudência consiste, já que somos humanos, em não querer ser mais sábios do que nossa natureza permite."
(in Elogia da Loucura, Erasmo. Foto Sandra Porteous)

quarta-feira, 18 de março de 2009

Salve, Rainha

Claro enigma do poeta.
Brisa. Vento. Ventania
que enlouquece o rei,
o fauno, o ermitão.
Caixa de segredos
entreaberta somente
quando decifrados
os códigos do coração.
Nobre, suave, dama,
na cama se derrama,
veste fantasias,
cria e recria o gozo
e o põe numa redoma.
Inventa idiomas.
Se diz aos gemidos,
aos teus ouvidos:
- Mar!
pode ser outra língua
que convém ao súdito
decifrar.
(in Diário Íntimo da Palavra, Nei Leandro de Castro. Foto Sandra Porteous)

terça-feira, 17 de março de 2009

A Preguiça

Estando a filha com dor de parir, saiu a preguiça em busca da parteira. Sete anos depois ainda se achava em viagem, quando deu uma topada. Gritou muito zangada:
- Está no que deu o diabo das pressas...
Afinal, quando chegou em casa com a parteira, encontrou os netos da filha brincando no terreiro.
(in Contos Tradicionais do Brasil, coligidos por Luís da Câmara Cascudo)

sábado, 14 de março de 2009

Leões, leopardos, panteras e trigres

Estes têm as unhas na bainha e nunca as tiram para fora senão sobre a presa ou um inimigo.

(in Bestiário de Leonardo da Vinci, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 2 de março de 2009

Rio de Janeiro - 444 anos

Visão do Jardim Botânico
Dança de cipós e explosões de agaves.
(É a alvorada do Paraíso.)
Palmeiras leques da manhã,
Abanam a brasa das flôres.
Estalactites côr de cera -
A chuva de ouro - goteja na eternidade.
Gladíolo, espada de arcanjo, cega ao sol,
Feras de sombra emolduram o silêncio verde,
O estreito riacho entre os íris
Quebra-se em mil ametistas.
Nós somos os primeiros homens, vestidos de folhas
Em formas ricas.
(in Rio de Janeiro em Prosa e Versa, poema de Wira Wowk, 1964, foto Sandra Porteous)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Amoramor

Eu queria ter tido
um amor absurdo
abissal
como um navio
entrando na nave
de uma catedral.
(in Diário Íntimo da Palavra, Nei Leandro de Castro. Foto Sandra Porteous)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Três ruas do Rio

Rua Professor Estelita Lins
Ali no ponto
onde rugem os ônibus
consolidou-se o que era doce.
Encontro, encontro,
o amor completo,
a filha que vem,
feto e afeto.
O ventre imenso,
barriga alada
da mulher mãe,
da fêmea amada.
(Poema escrito por Nei Leandro de Castro há 31 anos, publicado no Diário Íntimo da Palavra.
Foto de Juliana grávida de Olívia, tirada por Sandra Porteous em 2009.)

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Rio Revisitado

Os jardins floridos da General Glicério
(fotos Sandra Porteous)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Feira Livre

Tomates
Perto de quem os vende,
uma mulher exangue,
os tomates exibem
uma pele lisa
cheia de sangue.
Rosas
À beleza tão decantada
da rosa, rosa, rosae,
a feira chega a ser ingrata.
Nela, uma rosa
uma rosa, uma rosa
é mais barata.

Jerimum

Sou um dos que se recusam

a chamar de abóbara

o jerimum.

(in Feira Livre, Nei Leandro de Castro. Fotos Sandra Porteous)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

No Jardim Botânico

(...)
Nos primeiros dias no Rio revisitado, vou correndo ao encontro da paz exuberante do Jardim Botânico, um dos lugares mais belos e tranquilos do mundo. A aleia principal é ladeada por palmeiras bicentenárias, plantadas por dom João VI. Pela vereda principal, dobra-se à esquerda mais adiante e se chega ao lago onde frei Leandro meditava e dava lições de santidade. Ali, eu medito e peço ao meu quase xará que me livre das tentações. (...)
(In De volta ao Rio, crônica de Nei Leandro de Castro. Foto Sandra Porteous)

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

No Jardim Botânico

As mulheres de Matisse
- não importa o disse-me-disse -
dançam todas sempre nuas
em noite escura ou de lua.
(Nei Leandro de Castro, foto Sandra Porteous)

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Anjo Barroco

Eu vivo com meus fantasmas, um deles é sexual. Sátiro, persegue moças derruba-as pelas esquinas, levanta saia de freiras e sorri com a visão da brancura imaculada de suas calcinhas claras. O meu fantasma é anêmico e tem peito enfisemático, a sua risada estronda nos corredores escuros quando surpreende a adúltera em decúbito ventral. Fauno moderno, o fantasma galopa em bicicletas. Querendo, vira selim onde meninas estrepam o sexo de flores brancas. Meu fantasma tem roupões que ele veste por cima do corpo peludo em pêlo. Assim vestido, ele vai para a porta dos colégios, acena com picolés e docinhos pras crianças até que, na outra esquina, quando o guarda se afasta ele exibe seus guardados: duas esferas que apóiam a envergadura do sexo. Meu fantasma esquadrinha as fechaduras antigas por onde ele pode ver, com as têmporas latejando, o tímido que dilacera a noiva em lua-de-mel. Nos tabiques dos hotéis de terceira e quarta classe ele cola seus ouvidos e ouve a cama rangendo ouve a mulher docemente trespassada. Ouve ainda o macho que estertora na explosão do orgasmo. Meu fantasma vai à praia mas prefere estar na sombra porque o sol o dilui. E na sombra das barracas com o olho em grande angular olho-de-peixe aberto ele grava nas retinas um só pelinho de púbis que escapa dos maiôs. Nas piscinas, seu mergulho só esbarra, por acaso, em coxas, seios e nádegas. Anjo barroco, o fantasma entra no confessionário e goza, ele e o padre, com as confissões da viúva. Meu fantasma não lê livros porque acha que em sexo não devem entrar palavras. Prefere correr o risco de ser preso em flagrante comprando baralhos sujos em que reis trepam rainhas e as damas de ouro e copas se empalam no ás de paus. Alguém precisa ver só como o meu fantasma vibra com os seios, todos eles, exceto, claro, os murchos. Peitos de adolescentes libertos sob o vestido cujos bicos, dois espinhos, fazem buracos simétricos na bluxa. Os intumescidos, das mães que doam seu leite sob seus olhos mendigos. Seios, seios, seios, seios até os reproduzidos na série revista médica. Meu fantasma tem um trauma: nunca esmagou uma pulga nas nádegas de uma amante negra, vestida apenas de longas meias de renda. Ah, meu fantasma, bolinas até a menina dos olhos. Te exorciso. Vade retro.
(in Zona Erógena, Nei Leandro de Castro)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Uma fabulazinha de Franz Kafka

"Ai de mim!" exclamou o camundongo, "o mundo está ficando cada vez menor. De início era tão grande, que eu me apavorava. Vivia correndo para cá e para lá, é só me tranquilizava quando via, por fim, paredes bem distantes à esquerda e à direita. Mas o espaço entre essas paredes estreitou-se tão rapidamente que já me encontro na última câmara, e vejo ali no canto a ratoeira onde de certo esbarrarei."
"Ora, basta-lhe escolher outro caminho", disse o gato antes de engoli-lo.
(foto Sandra Porteous)

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Annabel Lee

Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
**
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
A ambos nos invejar.
**
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.
**
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem da noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
**
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
**
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.
(de Edgar Allan Poe, tradução de Fernando Pessoa)

sábado, 31 de janeiro de 2009

Solo

Existe um bairro
perdido entre duas esquinas
que recende docemente a estrelas.
Não há pássaros: só passos.
A ternura cresce
entre os paralepípedos
e um solitário colhe-a
como quem colhe alfazemas.

(in Diário Íntimo da Palavra, Nei Leandro de Castro. Foto Sandra Porteous)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Depois do gozo

Não durma agora, meu amor, espere um pouco.
Banhe-se no brilho de aurora dos meus olhos,
no lago dos nossos leites sobre o lençol,
na brisa morna dos meus suspiros, do meu hálito,
na fonte murmurante do pós-coito feminino.
(in Poemas Devassos e uma canção de amor, Nathália de Sousa. Ilustração de Toulouse Lautrec)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O rio e as ruas

"E tudo vive em nós, herdeiros de gerações incontáveis e de culturas sucessivas."
(in Civilização e Cultura, Luis da Câmara Cascudo)
O rio e as ruas
Nei Leandro de Castro
O rio era belo. Simples em sua beleza, só se tornava vaidoso, cheio de si, quando o pôr-do-sol saturava de ouro o seu dorso. Nas manhãs dos sábados e domingos, os meninos começavam a dar seus gritos de alegria, acima do casario, as águas do maior parque de diversões do mundo. Era bonita a festa. Mergulhos, disputas de cangapés, tentativas de atravessar o rio para apanhar os aratus que desfilavam no manguezal da outra margem. À beira do mangue, os chama-marés acenavam com suas patas enormes.
O rio era profundo, às vezes com fortes correntezas, mas não há registro de um só afogamento em suas águas. Os meninos não tinham medo de se afogar. O medo maior era de um ataque de cações, que chegavam traiçoeiros e famintos pelas águas da maré cheia. Diziam que os cações tinham cheiro de melancia. No meio do rio, alguém gritava "Cheiro de melancia!", e o grito de alerta causava pânico em todos. O mistério dos cações e seu estranho e inexplicável cheiro nunca foi comprovado. Mesmo assim alguns meninos daquela geração deixaram de comer melancia pelo resto da vida.
O rio era uma ponta de um azul liquefeito. Alcançar o outro lado era desafio para os melhores nadadores. Mais fácil era pegar o barco a vela no cais Tavares de Lira e fazer uma viagem de quinze minutos até a Redinha. Travessia, travessias. As redes de pescar dos nativos da Redinha, quando não estavam colhendo peixes o mar, ficavam estendidas para colher as cores do pôr-do-sol e as primeiras luzes do alvorecer.
O rio Potengi guardava segredos seculares. No seu leito, de águas mornas, há mais de quatro séculos, um pirata francês chamado Jacques Riffault, depois de exercer a pirataria, enchia o seu barco de indiazinhas com suas "vergonhas rapadas". O francês era gentil e amoroso. As índias amavam aquele homem de fala engraçada e muita delicadeza.
(...)
(foto Sandra Porteous)

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sonhos de Einstein

É impossível caminhar por uma avenida, conversar com um amigo, entrar em um edifício, relaxar sob os arcos de arenito de uma velha arcada, sem ver um instrumento de medição do tempo. O tempo é visível em todos os lugares. Torres de relógio, relógios de pulso, sinos de igreja, dividem os anos em meses, os meses em dias,os dias em horas, as horas em segundos, cada incremento de tempo marchando atrás do outro em perfeita sucessão. E, além de qualquer relógio específico, uma vasta plataforma de tempo, que se estende por todo o universo, estabelece a lei do tempo igualmente para todos. Neste mundo, um segundo é um segundo é um segundo. O tempo avança com exuberante regularidade, com exatamente a mesma velocidade em todos os cantos do espaço. O tempo é um soberano infinito. O tempo é absoluto.

(in Sonhos de Einstein, Alan Lightman. Foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Autobiografia

Comentário de Joaquim Francisco Coelho, professor de Língua e Literatura da Universidade de Harvard, sobre o livro "Autobiografia", de Nei Leandro de Castro. (...) "Você conseguiu o tom perfeito para a poesia memorial, esse gênero que não raro pode ser traiçoeiro, fazendo-nos inconscientemente derrapar no sentimental suspiro pelo que perdemos (ou se perdeu) na curva do tempo. Você suspira, certo, mas com o contrôle dos poetas que não confudem o lirismo piegas com aquilo que constitui o afeto profundo, digamos, a parte mais íntima da alma. Essa policiada dignidade perante as coisas do coração se afirma logo no poema proemial, com a solidão escrita a canivete na lousa de asfalto. Acho que é a primeira vez que vejo canivete e asfalto coroados de tocante poesia. E a cidade que você canta (rio, ruas, bairros, tipos populares, de mistura a recordações amorosas e escolares) cantará em nós, doravante. Cantará em mim, de certeza."

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Anotações de leitura

(...)
O jardim, entregue a si mesmo havia mais de meio século, tornara-se extraordinário e encantador. Quem por ali passasse há quarenta anos parava na rua para contemplá-lo, sem desconfiar dos segredos que ocultava por trás da folhagem. Mais de um sonhador, não poucas vezes, deve ter deixado os olhos e o pensamento penetrar indiscretamente através das barras daquela velha grade fechada (...)
(in Os Miseráveis, Victor Hugo - foto Sandra Porteous)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Chamada dos Ausentes

Este poema, escrito por Nei Leandro de Castro, foi declamado numa cerimônia realizada em Natal no dia Internacional de Solidariedade para com o Povo Palestino em 29 de novembro de 1982. Lamentavelmente, ele continua atual.
Chamada dos ausentes
(...)
Os mortos, os desaparecidos, os ausentes
- voluntários de um rito pela liberdade -
estão em cada um de nós.
Onde está o primeiro guerrilheiro adolescente
que investiu contra os tanques do invasor?
- Presente.
Onde está o poeta Mahmud Darwich
aquele que disse: "Meu sangue é um fio de azeite
que alimenta a lâmpada da liberdade?"
- Presente.
Onde está o patriarca que já perdeu todos os filhos
na frente de combate e tem nos olhos
mais ardor de luta do que luto?
- Presente.
Onde estão os versos de Samir Al Quassim,
aquele que leva um sol na mão direita
e repete nas encruzilhadas da noite
o canto do ardor?
- Presente.
Onde está a menina palestina
que descobriu o primeiro amor de sua vida
minutos antes de ser metralhada no pátio da escola?
- Presente.
Onde está a poesia guerrilheira de Fadwa Tuqan,
mais temida pelo inimigo do que dez atentados?
- Presente.
Onde está a mãe que já não embala o recém-nascido
porque perdeu os braços na explosão?
- Presente.
Onde estão tuas palavras, Muhamad Al Quissi,
gritadas ao vento quando a noite é uma horda de lobos dementes?
- Presente.
Onde está a solidariedade da poesia,
elo de lã de aço entre os homens?
- Presente.
Onde está a Palestina massacrada?
- Presente.
Onde está a Palestina libertada?
- Presente.
Onde está a Palestina?
- Presente.