terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Soneto 11 de Camões

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
***
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder
***
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
***
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(Soneto 11 de Luiz Vaz de Camões, ilustração O Beijo de Rodin)

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Diário de Florença

Os trens da EuroStar que ligam Roma a Florença não são TGV, mas desenvolvem até 220 quilômetros por hora. A partir de Roma, em pouco menos de duas horas esses trens nos deixam na estação de Florença, que fica bem próxima à belíssima igreja de Santa Maria Novella. Essa igreja, cujos sinos nos despertam às sete da manhã, guarda entre outras preciosidades um crucifixo de Giotto (1266-1337) e um afresco de Masaccio (1401-1428). A estação também fica perto de bons hotéis, restaurantes e trattorias. Numa caminhada de dez minutos, sem pressa, chega-se ao Hotel Aprile, onde nos hospedamos pela primeira vez em 1986. Começa então uma sucessão de dias de prazer, de deslumbramento, de descobertas e redescobertas. A primeira providência é deixar as malas e caminhar pela Via della Porcellana, uma ruazinha estreita que leva à margem direita do Arno. Dessa vez não vi o grupo de prostitutas fellinianas que fazia ponto por ali - duas delas até já me cumprimentavam. Das cinco que compunham o time em outros tempos, resta uma, meio sambada, já passada dos quarenta nos, mas ainda cheia de amor para alugar.
Andar pelas margens do Arno é um grande, grande prazer. O pôr-do-sol, visto da ponte Vecchio, só perde mesmo para o banho de ouro que o sol da terra de Poti mais bela dá todos os dias no Potengi. O Arno corre tranqüilo, parece domesticado, preso entre grossas paredes, mas já mostrou a sua fúria espantosa. Em 1966, o rio inundou Florença, invadiu museus, prédios renascentistas, igrejas seculares, destruiu preciosidades. Na igreja de Santa Croce, as águas atingiram cinco metros de altura e fizeram grandes estragos em sua nave cheia de obras de arte. Um crucifixo do mestre Cimabue (1240-1302), até hoje não restaurado, é exibido como testemunha da tragédia. Desde então, qualquer chuva mais forte assombra os florentinos.
A gente só tem a aprender quando caminha pelas ruas estreitas e pela história de Florença. A Piazza della Signoria reúne multidões. Ali, um círculo de mármore sobre o calçamento marca o local onde Savonarola, um padre dominica cheio de som e fúria, foi morto na foguera, em 1498. Mais adiante, o Perseu de Benvenuto Cellini (1500-1571). Para atingir o calor necessário à fundição dessa escultura, Cellini confessa em suas memórias que tocou fogo na própria casa. Bem perto do Perseu, que está segurando a cabeça da Medusa, ergue-se o Galleria degli Uffizi, uma das maiores concentrações de arte do mundo. Pena que as filas para a entrada se estendam por quilômetros, mas vale a pena esperar algumas horas e se extasiar diante de séculos de arte. O Nascimento de Vênus, de Boticelli, lhe dá as boas-vindas.
A culinária de Florença é outra atração. Os risotos são divinos. A vitela e o cordeiro são os pratos mais saborosos da Toscana. Os garçons não são abusados como os romanos e os donos de trattorias vêm com freqüência à nossa mesa. Um deles, ao perceber que éramos brasileiros, disse que tinha sido amigo íntimo do jogador Sócrates, o maior bebedor de cerveja que Florença conheceu.
(Crônica de Nei Leandro de Castro, in Rua da Estrela, foto de Sandra Porteous)

domingo, 16 de janeiro de 2011

Lapa

O bonde passa
pelo espinhaço
dos arcos.
Mas não é o seu peso
que esmaga
a prostituta lírica
que procura nas cores
do ruge e do batom
a feérie da Lapa
onde ela estreou
numa noite mágica
que ainda hoje
é o que detém a sua mão
de dedos crispados
nos gumes da gilete.
(Poema de Nei Leandro de Castro, óleo s/tela de Sandra Nunes)

sábado, 15 de janeiro de 2011

Composição

Brinco de compor teu corpo inteiro,
teu corpo claro mistério
em jogos de sombra e luz.
A haste do pescoço sustenta a flor do rosto
que bebe na seiva da região dos seios
onde formas arredondadas se eriçam: arrepios.
Um fio a prumo invisível desce do umbigo
ao abrigo das carícias, todas, lembradas
em manhãs e madrugadas. Claridade.
Ouso compor a maciez do púbis castanho,
escargots de pêlos que se aninham
à sombra da pele muito branca. Ali repousa
o pássaro-pássara do meu desejo
de plumagem molhada às primeiras carícias
ou aos sussurros que supõem a delícia
de amar, fazer amor, fazer doçuras,
doces loucuras, bagunça, estripulias
que você nem lembra se já fez um dia.
O retrato visto de outro ângulo, subjetivo:
o prazer da entrega que sobe dos pés,
ergue-se pelas colunas macias das coxas,
envolve o sexo e o torna umedecido, vem
em linha reta até a boca, flor e sexo,
e se completa na luz e sombra desses olhos
que prometem jogos intensos de ternura,
tesão e travessias travessuras.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez Eros, ilustração Eros e Psiquê de Eduard Munch)

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Uma viagem a Paris

Um dia desses fiz uma visita a Paris dos anos 20, na agradável e erudita companhia de William Wiser. Foi uma viagem deslumbrante em todos os sentidos. Na primeira visita a Montmartre, dei de cara com Josephine Baker passeando com um leopardo preso a uma coleira prateada. A cidade e seus habitantes estavam tão acostumados com as esquisitices da cantora que só turistas e crianças paravam para vê-la desfilando com seu bichinho de estimação. William me levou à casa da Gertrude Stein e eu confesso que não gostei muito daquela mulher baixinha, parecida com uma índia asteca, mandona, sempre encangada com Alice Toklas. Alice, sim, era um doce de pessoa, de gestos meigos, suaves murmúrios.
Estive na Shakespeare & Co., de Sylvia Beach, mulher que somava talento, amor aos livros e generosidade. James Joyce, sempre arrogante e exigindo favores de Sylvia Beach, estava lá, derreado numa poltrona ao fundo da livraria. Era um gênio posando de gênio. O autor de Ulisses, quando se permitia dialogar com alguém, encerrava o papo com a sentença: "Você precisa ajudar James Joyce." E muitos acabavam ajudando o irlandês genial, mas que os mecenas não se atrasassem nas remessas. Se a ajuda não chegava no dia combinado, Joyce escrevia ao caloteiro: "Eu ficaria muito feliz se o seu cheque mensal me chegasse pontualmente."
Vi Erneste Hemingway, várias vezes, no Le Coupole e nos bares de Montparnasse, mas guardei uma certa distância. O autor de Paris é uma Festa, alto, fortão, gostava de lutar boxe e qualquer lugar poderia se transformar em ringue para suas exibições. Hemingway e Scott Fitzgerald estavam sempre se estranhando. Fitzgerald era irônico, vencia o adversário nas tiradas de humor, mas não suportaria meio round de luta, mesmo se Hemingway lutasse com um só braço. Irônico também era o compositor Erik Satie, que vi perambulando pelas ruas do subúrbio de Arcueil - solitário, excêntrico, místico, maravilhoso. Na solidão do seu apartamento, pouco maior do que uma cabine telefônica e que nunca passou por uma limpeza. Satie construiu uma obra que ocupa lugar de destaque na história da música moderna.
William Wiser é um cicerone incansável. Só repousa um pouco quando se senta em volta de uma mesa do Le Coupole ou da Closerie de Lilas, e pede um bom vinho. Ele faz um brinde àqueles que tiveram seus caminhos, seus talentos, cortados pela loucura ou pela morte prematura, como Zelda Fitzgerald, o poeta Hart Crane, Isadora Duncan e o romancista Raymond Radiguet. Mas a viagem não é para cultuar os mortos, tanto que William se recusa a visitar o cemitério Père Lachaise, a maior concentração de mortos ilustres por centímetro quadrado. Ele prefere caminhar comigo pelo Jardim de Luxemburgo, luxo e luxúria de verdes. Ali bem perto, ele informa, era o Casino de Madame M. Carrilleau, responsável por um dos maiores espetáculos noturnos de Paris. Em certas noites, depois de muitas taças de champagne, madame M. Carrilleau subia no palco e dançava o can-can. Sem calcinha.
(Crônica de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela, foto de Sandra Porteous)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Limão

Olhe o limão.
Sua beleza exata
cítrica, glauca.
O limão parece uma redondilha
maior, com rimas em ão.
(poema de Nei Leandro de Castro in Feira Livre, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Meus verdes anos

Meus verdes anos às vezes tinham a cor do verde lodo. Numa tarde, depois de gazear uma aula no Atheneu, que ainda ficava na Junqueira Aires, fui com uma turma pescar no Potengi. Ficamos perto da pedra da Chapuleta e jogamos nossas iscas, sabendo de antemão que o único peixe que poderia ser fisgado era o moré - pequeno, feio, sem serventia. Metido na farda do Atheneu, que minha mãe mantinha branca, imaculada, aguardei o peixe. De repente, uma fisgada mais forte do que a esperada. Derrapei no lodo, caí sobre a lama e as pedras que havia às margens do rio. Ainda hoje guardo na mão esquerda, perto do pulso, as cicatrizes dos ferimentos. E como convencer a minha mãe de que eu havia sujado a roupa e me ferido daquele jeito assistindo às aulas de geografia ou de história?
Estudei apenas dois anos no Atheneu da Junqueira Alves, que depois seria transferido para aquele prédio em forma de X, na Campos Sales. O antigo Atheneu, sob a direção do professor Celestino Pimentel, tinha uma grande atração: os bondes que vinham da Ribeira e subiam gemendo a ladeira da rua em que Câmara Cascudo viveu a maior parte de sua vida cheia de livros e de glória. O show ficava por conta da molecagem dos alunos. A gente passava sabão no trilho do bonde e aguardava a sua chegada, no parapeito do colégio, com a expectativa de uma torcida fanática diante de uma partida que decide o campeonato. E lá vinha o bonde, zunindo, potente, cheio de si. À altura do colégio, começava a patinar no trilho ensaboado. Quanto mais o condutor imprimia força ao monstro de ferro mais ele se desesperava, sem sair do lugar, sob vaias monumentais. Celestino Pimentel, que era um homem cordial, mas não admitia molecagens, ficava mais possesso do que o motorneiro do bonde.
Numa tarde de sábado ou domingo, eu e meus irmãos Euclides e Berilo fizemos uma cota e alugamos uma pequena canoa para pescar no outro lado do Potengi. Saímos remando, felizes da vida, pensando em pegar muito peixe e muito caranquejo às margens do manguezal. Antes de alcançarmos o outro lado, o céu escureceu de repente e sobreveio uma tempestade de varrer o mundo. Com gritos de medo, com choro, conseguimos chegar na outra margem e domamos a muito custo a canoa que dava pulos na água agitadíssima. Tremendo de medo e de frio, esperamos algumas horas até a tempestade serenar. Sempre que vejo de perto o Potengi, me vem essa lembrança cheia de arrepios e presságios. Mas o medo jamais superou o lirismo e a beleza com que o rio me contempla.
Maurício (vamos chamá-lo assim) era o menos inteligente de nossa turma. Falava errado, tirava as piores notas, era um desmantelo. Uma vez, formando uma dupla numa partida de sinuca, ele disse: "Agora é eu." Alguém corrigiu: "Agora é eu, não. Agora sou eu." E Maurício, revoltado: "Que história é essa? E eu não jogo não?" (Crônica de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela)