sábado, 31 de janeiro de 2009

Solo

Existe um bairro
perdido entre duas esquinas
que recende docemente a estrelas.
Não há pássaros: só passos.
A ternura cresce
entre os paralepípedos
e um solitário colhe-a
como quem colhe alfazemas.

(in Diário Íntimo da Palavra, Nei Leandro de Castro. Foto Sandra Porteous)

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Depois do gozo

Não durma agora, meu amor, espere um pouco.
Banhe-se no brilho de aurora dos meus olhos,
no lago dos nossos leites sobre o lençol,
na brisa morna dos meus suspiros, do meu hálito,
na fonte murmurante do pós-coito feminino.
(in Poemas Devassos e uma canção de amor, Nathália de Sousa. Ilustração de Toulouse Lautrec)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O rio e as ruas

"E tudo vive em nós, herdeiros de gerações incontáveis e de culturas sucessivas."
(in Civilização e Cultura, Luis da Câmara Cascudo)
O rio e as ruas
Nei Leandro de Castro
O rio era belo. Simples em sua beleza, só se tornava vaidoso, cheio de si, quando o pôr-do-sol saturava de ouro o seu dorso. Nas manhãs dos sábados e domingos, os meninos começavam a dar seus gritos de alegria, acima do casario, as águas do maior parque de diversões do mundo. Era bonita a festa. Mergulhos, disputas de cangapés, tentativas de atravessar o rio para apanhar os aratus que desfilavam no manguezal da outra margem. À beira do mangue, os chama-marés acenavam com suas patas enormes.
O rio era profundo, às vezes com fortes correntezas, mas não há registro de um só afogamento em suas águas. Os meninos não tinham medo de se afogar. O medo maior era de um ataque de cações, que chegavam traiçoeiros e famintos pelas águas da maré cheia. Diziam que os cações tinham cheiro de melancia. No meio do rio, alguém gritava "Cheiro de melancia!", e o grito de alerta causava pânico em todos. O mistério dos cações e seu estranho e inexplicável cheiro nunca foi comprovado. Mesmo assim alguns meninos daquela geração deixaram de comer melancia pelo resto da vida.
O rio era uma ponta de um azul liquefeito. Alcançar o outro lado era desafio para os melhores nadadores. Mais fácil era pegar o barco a vela no cais Tavares de Lira e fazer uma viagem de quinze minutos até a Redinha. Travessia, travessias. As redes de pescar dos nativos da Redinha, quando não estavam colhendo peixes o mar, ficavam estendidas para colher as cores do pôr-do-sol e as primeiras luzes do alvorecer.
O rio Potengi guardava segredos seculares. No seu leito, de águas mornas, há mais de quatro séculos, um pirata francês chamado Jacques Riffault, depois de exercer a pirataria, enchia o seu barco de indiazinhas com suas "vergonhas rapadas". O francês era gentil e amoroso. As índias amavam aquele homem de fala engraçada e muita delicadeza.
(...)
(foto Sandra Porteous)

sábado, 17 de janeiro de 2009

Sonhos de Einstein

É impossível caminhar por uma avenida, conversar com um amigo, entrar em um edifício, relaxar sob os arcos de arenito de uma velha arcada, sem ver um instrumento de medição do tempo. O tempo é visível em todos os lugares. Torres de relógio, relógios de pulso, sinos de igreja, dividem os anos em meses, os meses em dias,os dias em horas, as horas em segundos, cada incremento de tempo marchando atrás do outro em perfeita sucessão. E, além de qualquer relógio específico, uma vasta plataforma de tempo, que se estende por todo o universo, estabelece a lei do tempo igualmente para todos. Neste mundo, um segundo é um segundo é um segundo. O tempo avança com exuberante regularidade, com exatamente a mesma velocidade em todos os cantos do espaço. O tempo é um soberano infinito. O tempo é absoluto.

(in Sonhos de Einstein, Alan Lightman. Foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Autobiografia

Comentário de Joaquim Francisco Coelho, professor de Língua e Literatura da Universidade de Harvard, sobre o livro "Autobiografia", de Nei Leandro de Castro. (...) "Você conseguiu o tom perfeito para a poesia memorial, esse gênero que não raro pode ser traiçoeiro, fazendo-nos inconscientemente derrapar no sentimental suspiro pelo que perdemos (ou se perdeu) na curva do tempo. Você suspira, certo, mas com o contrôle dos poetas que não confudem o lirismo piegas com aquilo que constitui o afeto profundo, digamos, a parte mais íntima da alma. Essa policiada dignidade perante as coisas do coração se afirma logo no poema proemial, com a solidão escrita a canivete na lousa de asfalto. Acho que é a primeira vez que vejo canivete e asfalto coroados de tocante poesia. E a cidade que você canta (rio, ruas, bairros, tipos populares, de mistura a recordações amorosas e escolares) cantará em nós, doravante. Cantará em mim, de certeza."

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Anotações de leitura

(...)
O jardim, entregue a si mesmo havia mais de meio século, tornara-se extraordinário e encantador. Quem por ali passasse há quarenta anos parava na rua para contemplá-lo, sem desconfiar dos segredos que ocultava por trás da folhagem. Mais de um sonhador, não poucas vezes, deve ter deixado os olhos e o pensamento penetrar indiscretamente através das barras daquela velha grade fechada (...)
(in Os Miseráveis, Victor Hugo - foto Sandra Porteous)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Chamada dos Ausentes

Este poema, escrito por Nei Leandro de Castro, foi declamado numa cerimônia realizada em Natal no dia Internacional de Solidariedade para com o Povo Palestino em 29 de novembro de 1982. Lamentavelmente, ele continua atual.
Chamada dos ausentes
(...)
Os mortos, os desaparecidos, os ausentes
- voluntários de um rito pela liberdade -
estão em cada um de nós.
Onde está o primeiro guerrilheiro adolescente
que investiu contra os tanques do invasor?
- Presente.
Onde está o poeta Mahmud Darwich
aquele que disse: "Meu sangue é um fio de azeite
que alimenta a lâmpada da liberdade?"
- Presente.
Onde está o patriarca que já perdeu todos os filhos
na frente de combate e tem nos olhos
mais ardor de luta do que luto?
- Presente.
Onde estão os versos de Samir Al Quassim,
aquele que leva um sol na mão direita
e repete nas encruzilhadas da noite
o canto do ardor?
- Presente.
Onde está a menina palestina
que descobriu o primeiro amor de sua vida
minutos antes de ser metralhada no pátio da escola?
- Presente.
Onde está a poesia guerrilheira de Fadwa Tuqan,
mais temida pelo inimigo do que dez atentados?
- Presente.
Onde está a mãe que já não embala o recém-nascido
porque perdeu os braços na explosão?
- Presente.
Onde estão tuas palavras, Muhamad Al Quissi,
gritadas ao vento quando a noite é uma horda de lobos dementes?
- Presente.
Onde está a solidariedade da poesia,
elo de lã de aço entre os homens?
- Presente.
Onde está a Palestina massacrada?
- Presente.
Onde está a Palestina libertada?
- Presente.
Onde está a Palestina?
- Presente.