segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Registro


Na manhã em que você nasceu, Juliana,
havia prospecção de sangue no deserto de Ogaden,
um egípcio bem vestido perseguia de jato
o Prêmio da Paz doado pelo inventor da dinamite,
a Terra - nua, maníaco-depressiva, azul -
continuava o passeio em volta de si mesma
violentada pelos olhos lúbricos
de mil novecentos e setenta e oito satélites,
o índice médio de violações e crimes
permanecia em alta em todas as bolsas
(com uma brusca valorização em Jacarepaguá,
onde um homem pobre e violento foi morto a socos
por cidadãos pobres e pacíficos),
o povo que um dia você vai conhecer mais de perto
cumpria o prazo regulamentar de cinco dias
para gritar na rua e gastar todas as suas reservas,
depois do que voltava à mordaça
e ao trabalho diário a Cr$5,50 a hora,
proibido de gritar de fome, proibido de ver
a tortura, a violência, os sequestros decretados
em nome de uma teoria da relatividade democrática.
E no entanto, Juliana,
eu me lavava na ternura humana dos seus olhos
de repente abertos para o mundo.

(Poema de Nei Leandro de Castro, publicado em CantocontraCanto, escrito em fevereiro de 1978 - foto de Ron Robinson)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

E eu?


Sófocles disse: Maravilhas há muitas, mas nenhuma tão estranha e terrível como o homem.
***
Shakespeare disse: Os homens estão nas mãos dos deuses como moscas nas mãos das crianças. Brincam com eles até esmagá-los.
***
Shelley disse: Os poetas são os legisladores não reconhecidos pelo mundo.
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Prudhomme disse: Deus é tudo o que me falta para compreendê-lo.
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Napoleão disse: Construo meus planos de batalha com os sonhos de meus soldados adormecidos.
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Brecht disse: Muitos reclamam contra a violência das águas do rio/mas ninguém fala da violência das margens que o comprimem.
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Fernando Pessoa disse: O mais do que isto/É Jesus Cristo/Que não sabia de finanças/Nem consta que tivesse biblioteca.
***
E eu, porra, não digo nada?

(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, ilustração de Magritte)




segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ser ou não ser


Não quero mais pensar,
o pensamento dói.
Se eu tivesse entre as mãos
um crânio escarnado
(despojado do pensamento,
dos olhos, da metafísica
da calvície ou dos cabelos),
entre ser e não ser injusto
eu preferia jogar com ele
uma brilhante partida de futebol.



(Poema inédito de Nei Leandro de Castro)

domingo, 4 de setembro de 2011

Fantasias


Se Eros - oriundo do Caos inicial - existe,
todas as fantasias do amor são permitidas.
Escolho as armas: te quero amar na praça mais clara
de uma aldeia grega, com dois voyeurs morrendo
de enfarte ao ouvir os teus gritos insensatos.
Te quero na maciez da relva, às vésperas do beijo,
quando teus seios doem se a brisa sopra sobre eles.
Te quero transgredindo as leis, subjugando reis,
enquanto tomo conta dos teus pensamentos,
dos teus desejos inflamados como um rio em chamas.
Te quero aprendendo e praticando os segredos
que as velhas cortesãs francesas só confiavam a ciganas e poetas.
Te quero dançando embriagada entre cristais,
multiplicando vinte vezes e mais uma
a nudez e o meu desejo.
Se Eros - responsável pela harmonia do Cosmos - existe,
todas as fantasias são permitidas.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra)