sexta-feira, 23 de julho de 2010

Despertar em Florença

Cedo, os sinos, sinos, sinos de Santa Maria Novella despertam os nossos sentidos. Um novo dia para renovar a paixão que sobe das ruas com seus ares seculares. Ruas palmilhadas por Da Vinci, Michelangelo e por Masaccio, um gênio que descobriu a morte aos 27 anos, não sem antes guiar Adão e Eva na sua saída quase honrosa do paraíso. Florença, renascença de amor e arte para sempre gravada nos nossos sentidos despertados pelos sinos, sinos, sinos de suas igrejas.
(Poema de Nei Leandro de Castro, ilustração de Masaccio)

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Cego de azul

Molhando seus pés na areia
sonhou por mares antigos
em frios mastros sonhar.
Gritar veleiros à vista
ver sangue e cristal o mar.
Em noite escura saudoso
de um fugitivo luar
inventar bandos de luas
banhando a nudez no mar.
***
Seus olhos límpidas pérolas
de horizontes de além-mar
se abriam como velames
contra o vento azul do mar.
***
Molhando seus pés na areia
pisou na lua encharcada
que havia no espelho baço
da praia branco e luar.
***
Os olhos se dilataram
em ânsia de navegar.
Não viram a lua, o peixe,
veleiros a naufragar,
búzios, sargaços, estrêlas
- cegou-os o azul do mar.
(Poema de Nei Leandro de Castro in "O pastor e a flauta", ilustração de Van Gogh)

sábado, 17 de julho de 2010

O amor oculto

Onde se oculta o amor oculto? Nas franjas do mar? Na cortina dos cabelos? Faz bem à alma tocar o seu corpo ou simplesmente vê-lo. O amor oculto tem um sorriso que lembra sons de flauta e de guizos. Seus olhos escuros, dissimulados, são promessas de ternura, carícias e pecados. O amor oculto percorre caminhos, trilhas, ama a natureza e é livre, solto, felino como uma tigresa. Como se veste o amor oculto? Roupas escuras? Calça jeans? Blusa amarela? Se é oculto, como dizer o nome dele ou dela? Como me surge esse amor oculto? De que jeito? Tem uma dália tatuada sobre o peito? Escala falésias? Dança conduzida pelos vinhos? Devora com prazer, muito prazer, a sobremesa? O amor oculto sonha como poeta e quase foi princesa. Quero que o seu sorriso e seu olhar me afaguem com a doçura e a delicadeza dos bombons da Kopenhagen. O amor oculto se esconde em montanhas, se perde na neblina, mas seu sorriso permanece e ilumina. É ninfa de patins dobrando a primeira esquina. O amor oculto surge, sem pedir licença, nas minhas horas matinais. E permanece pela tarde, pela noite, e quer mais, sempre quer mais. O amor oculto é tranqüilo, discreto, não gosta de palavrão, exceto os gritados nas horas desvairadas da paixão. É embriaguez em loja de louças, absinto em xícaras azuis. O amor oculto emerge de crateras, quimeras, vestido de luz. O amor oculto faz questão de não ser, não estar, não vir à tona. De repente, monta e grita e esporeia e cavalga como uma amazona.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Pablo Picasso)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A presença da poesia

Numa tarde de solidão quase infinita, a poesia surgiu diante de mim, me pegou pela mão e saímos juntos. Levou-me correndo para as falésias manchadas com o vermelho desbotado do anticrepúsculo, e eu percebi claramente que a poesia tinha corpo de mulher, ternura de mulher, magia de mulher. Beijou-me na boca, despiu-se e disse que queria ser amada não como usualmente se ama a poesia, mas como se ama uma mulher cheia de desejos. A poesia tinha uma cabeleira escura, os seios apontando para o infinito e os seus lábios tremiam. Começamos a trocar carícias e eu jamais poderia imagina que a poesia fosse tão bela, tão deslumbrante, quando se despe totalmente. A poesia me lançou nardos e dardos de doçura, gemeu e os seus gemidos foram tão fortes que, a muitas léguas dali, um homem à beira do suicídio despertou para a vida e escreveu uma ode ao amor. À nossa volta, gaivotas ficaram tontas de ternura, ensaiaram vôos acrobáticos e saudaram os amantes nas alvuras e alturas das falésias com seus gritos marinhos. Depois do crepúsculo, a noite demorou a chegar porque a tarde alcoviteira queria ver mais, ver mais. Na despedida, depois de tantos embates, desses que ficam gravados na memória como tatuagens, a poesia me disse algo que me deixou preocupado, em alerta. "Se você continuar preferindo ficar muito triste" - disse ela num sussurro, numa doce advertência - "eu não o visito mais. Tristeza cansa, meu amado." E logo depois saiu dos meus braços e eu me vi no alto das falésias, na solidão mais maravilhosa que um ser humano pode conhecer. Oito gaivotas pousaram nos meus ombros, me acariciaram com os seus bicos indiscretos e em seguida levantaram vôo, talvez à procura da poesia.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração "O Beijo" de Rodin)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Noturno só para Maysa


Liberto-me do dia
porque a noite desabrocha em pétalas de ópio
e cria uma distância íntima.
A noite penetra pelos meus ouvidos,
pelo meu sexo, possui-me
(pólen estéril apenas crescendo em dor)
e mostra, na metamorfose
da posse, a outra face
que procuro para caminhar só
entre os homens.
Sei da inexistência da aurora:
tímida rosa fecundada
longe de minhas mãos inúteis.
Sei das cores irreais da rosa
que se abrirá somente
quando a tocares de leve com o teu beijo.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Voz Geral, 1963, foto arquivo do Google)

domingo, 4 de julho de 2010

A gula

A gula brilha nos olhos grandes dos glutões, com o fulgor das gemas malpassadas. A gula mergulha e nada no frigir dos ovos, no ouro liquefeito do azeite de dendê, naufraga em molhos untuosos: bechamel. Na mesa, a gula rende-se à beleza trágica do leitão asfixiado por uma maçã. A gula trespassa com a língua e com os dedos a cobiçada virgindade das empadas. De noite, quando a lua é uma fatia de queijo no infinito, a gula toma a geladeira de assalto, em busca do último pedaço de camembert que se refugiou no frio, protegido por mortais mortadelas. A gula é docemente herética: adora papos-de-anjo, barrigas-de-freira, toucinhos-do-céu e a eternidade tecida em fios de ovos. Com olhar mendigo, a gula lambe os chocolates do hemiplégico. A gula se perde e se encontra em paisagens de sonho: montanhas de claras em ponto de neve, bosques de algodão-doce e alcaçuz, às margens de um lento e silencioso rio de leite condensado. Mel sobre panquecas, morangos soterrados pelo creme, nozes e amêndoas cobertas de calda de morango, o sabor e o perfume da baunilha sob camadas de mousse - eis os jogos de esconder da gula. A gula adora os lábios carnudos e trêmulos das gelatinas. Politicamente incorreta, ela alimenta o seu desejo mais intenso: omeletes de ovos de avestruz com recheio de corações de beija-flor no café da manhã. A gula se banha em cascatas de saliva. Carrega nos bolsos pegajosos de gordura o seu pecado capital. Não teme o inferno e suas amarguras de jiló. Rejeita a cozinha insossa do purgatório. E só admite um céu: o palatino.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Caravaggio)

sábado, 3 de julho de 2010

Relembranças

Lembranças de amores idos e vividos estão chegando e tomando lugar diante das teclas do computador. Minha primeira namorada se chamava Marinete e morava na Afonso Pena, bem em frente a um areal onde minha turma jogava pelada. Com quinze dias de namoro, Marinete permitiu que eu pegasse na sua mão. Mas o gesto foi visto pelo irmão, que deu queixa ao pai, que botou de castigo a namoradinha e a obrigou a acabar o namoro.
*
O primeiro beijo foi em São José de Mipibu, onde eu passava férias na casa do meu tio Miguel. Certa manhã, num beco que levava a uma entrada lateral da casa, uma menina da minha idade, cerca de 11 anos, se aproximou e me surpreendeu com um beijo na boca. Eu poderia fantasiar, romantizar o momento, mas sinceramente não gostei. O beijo tinha gosto de cuspe... Poucos anos depois, ainda em São José de Mipibu, namorei com Zizi, que tinha passado 30 dias de férias no Rio de Janeiro e chiava como gente grande. O que mais atraía em Zizi era o sotaque, quando ela falava djia, tchinha, tchitchia. Paquerei Zizi montado na bicicleta do meu primo e ela se rendeu à minha habilidade de ciclista. Com três dias de namoro, ela perguntou onde estava a minha bicicleta e eu lhe disse que a bicicleta não era minha. Zizi fechou a cara, deu uma rabissaca e me mandou andar, dizendo que não namorava rapaz sem dinheiro para comprar uma bicicleta.
*
Mas paixão, paixão mesmo, eu tive pela minha professora de francês do Atheneu. Ela era doce,tranquila, muito bonita. Nos meus doze anos, eu me sentava na primeira fila e ficava bebendo as suas palavras, doces palavras ditas em francês. Uma vez, ousei perguntar: "Professora, como se diz "eu te amo" em francês?" Quando ela disse, com voz sussurrante "je t'aime", eu tive certeza de que estava recebendo uma declaração de amor. A partir desse dia, eu sussurrava em suas aulas je t'aime, je t'aime, muito apaixonado. Foi ela quem me despertou a paixão pela língua francesa. Na Aliança Francesa do monsieur Bernard Alleguède, eu sonhava ter uma professora bela e apaixonante como aquela.
(Texto de crônica de Nei Leandro de Castro, foto de arquivo do Google)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Regatas

As quilhas dos ioles
cortavam como navalhas
o dorso do rio, a paz do rio
sob o azul dos domingos.
***
À margem esquerda,
o silêncio enlameado do manguezal,
um cheiro forte, um silêncio de morte.
***
À margem direita do rio,
estudantes e cafetões, putas e doutores
torciam pelo Náutico e pelo Sport.
(Poema de Nei Leandro de Castro, ilustração de Thomé Filgueira)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Mesa de bar confidente

Três homens, todos com mais de 60 anos, se reúnem quinzenalmente num bar do Tirol. Sentam-se em volta da mesa reservada para eles e são atendidos pelo dono do bar. Pelo que bebem, pelas viagens que narram, devem ter boas aposentadorias, mas não são ricos. Ricas são as aventuras que eles contam, bebendo calmamente suas doses de Old Parr, fingindo que não vêem as pessoas em volta. Um deles contou que, aos 59 anos, se apaixonou por uma menina 30 anos mais jovem do que ele. "Foi uma das mulheres mais sensuais e maravilhosas que conheci" - sussurrou. Seus olhos ficaram úmidos e ele pigarreou forte. E disse que a menina, bela e aventureira, havia passado uma temporada em Portugal e de lá guardara expressões que o levavam a surtos de ternura. Por exemplo: "Vem, fica-te ao pé de mim." Quando ele chegava pertinho dela, a menina o beijava muito, muito, e recitava de cor sonetos de Florbela Espanca. O apaixonado, que nunca fora um leitor de poesia, passou a ler todos os poetas ao seu alcance, para agradar a sua amada. O amor floresceu como lírios azuis, a ternura teceu todas as suas tramas com as cores do arco-íris, a vida pulsva no seu coração com a força de um exército em marcha. Numa noite de 13 de agosto, a menina veio ao seu encontro, no lugar de sempre, e disse, quase sem voz, com lágrimas turvando os seus olhos e a sua alma: "Eu sou noiva de um mineiro, vamos casar e morar no interior de Minas. Te amo muito, muito, não cante o coração com mais verdade, como disse o poeta. Mas vou-me embora." E nunca mais deu notícias. O boêmio, enxugando as lágrimas, concluiu dizendo aos amigos de copo, testemunhas de sua dor, que naquele 13 de agosto descobriu que não tinha vocação para suicida. ...
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Di Cavalcanti)