quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Museu Rodin

(foto de Sandra Porteous)

Os peixes luminosos

O primeiro peixe de Luci tinha o corpo verde escuro, a boca vermelha, os olhos oblíquos e amarelos. De noite, a menina levou o peixe para a cama e teve um acesso de asma. Veio o médico, disse que a crise era de fundo nervoso, passou calmante em xarope. Mas a mãe achou que era alergia ao feltro e guardou o peixe em cima do armário. Luci gritou, meio sufocada, o peito subindo e descendo como um pequeno fole, e tanto gritou que recebeu o peixe de volta. Quando o calmante fez efeito, ela adormeceu com o peixe de feltro entre os braços, embalado pela sua respiração de asmática. A mãe de Luci quis substituir o peixe por outros brinquedos (bonecas que dormiam e choravam, bonecas-manequins, bonecos que faizam pipi), mas em todas as tentativas acabou entregando os pontos. Luci esperneava, gritava, ficava roxa, engasgada pelo choro. Quando a asma começava a dar os primeiros sinais, a mãe se rendia incondicionalmente. Foi o pai quem conseguiu afastar Luci de sua obsessão. Trouxe-lhe outro peixe, de matéria plástica, cor de laranja, com quem Luci passou a dividir sua paixão, embora continuasse mais dedicada e carinhosa com o peixe de feltro. Aos dez anos, Luci tinha trinta e sete peixes de todas as formas e cores, mais trezentos e dez rabiscados em seus cadernos de desenho, além dos dois que o pai havia colocado em moldura. No aniversário dos doze anos, a menina ganhou um aquário, onde dois carás-bandeiras nadavam entre miniaturas de corais e um escafandrista que fazia uma linha reta de bolhas de ar, do seu capacete à superfície da água. De noite, quando os convidados da festinha foram embora, os pais da aniversariante se trancaram no quarto de casal, que era ligado ao de Luci. Pouco tempo depois, surgiram os gemidos: a mãe de Luci parecia estar sofrendo muito, muito, muito, até que seus gemidos cessavam tão de repente quanto haviam surgido. Mas desta vez a menina não prestou atenção. Estava hipnotizada pela evolução mágica dos peixinhos coloridos. A asma, que há meses não atacava, veio de madrugada, com violência. Nervosa, evitando os bocejos, a mãe deu antialérgico, calmante, fez nebulização no quarto da doente e ameaçou jogar fora todos aqueles peixinhos imundos que inundavam a casa. Luci olhou para a mãe com um olhar assustado de peixe. Quando o chiado de fole do seu peito permitiu, ela disse: - Se você fizer isto, eu me mato. A mãe saiu porta afora, jogou-se de bruços na cama de casal e molhou a metade do travesseiro com as lágrimas do seu choro abafado. Assim que sarou, Luci foi ao aquário, meteu a mão dentro da água e arrancou de lá o minúsculo escafandrista. Ao pai, ela explicou que aquele homem podia matar os seus peixinhos de noite, quando eles estivessem dormindo. Três dias depois, os peixinhos começaram a agonizar, por excesso de comida, o pozinho amarelado que Luci jogava aos punhados dentro do aquário. O pai notou o começo da agonia dos carás, que procuravam a superfície, de boca aberta e sem respiração, muito aflitos, como se estivessem num surto de asma. Arrastou a menina pelo braço e a levou a uma loja de peixes ornamentais. Luci gritou de alegria com a visão de tantos peixinhos. Havia os esguios e velozes, outros redondos, bonachões, translúcidos, listrados, multicoloridos, com barbatanas de seda tecidas a mão. Ela fez o pai comprar um aquário retangular, com bastante espaço, e seis casais de peixes, os mais bonitos deles. Tinha os neons, vermelhos e riscados por uma faixa verde incandescente, que ia dos olhos à base da cauda. Outro casal, o menor de todos, era cinza acastanhado, com desenhos verdes e uma listra preta horizontal ao longo do dorso. Luci achou muito engraçado o beijador, que tinha um nome perfeito: os peixinhos cor de rosa com reflexos esverdeados ficavam frente à frente, com as bocas unidas, como se estivessem se beijando. Os peixes japoneses era pedaços de cores diluídos na água. Combinavam vermelho, dourado, branco e preto sobre as minúsculas escamas. - Esses duram a vida toda - disse o veterinário. Havia ainda o tricogaster ("Xi, que nome esquisito!", exclamou a menina), azul claro prateado, com faixas verticais onduladas e mais escuras. E, por fim, o casal de peixe-espada, com o macho, soberbo, exibindo o que o distinguia da fêmea: o prolongamento dos raios inferiores da cauda, de cor vermelho-sangue, que parecia uma espada em riste. A menina voltou para casa muito feliz e nem prestou atenção às desculpas da mãe que jurava, má encenação, que os dois peixinhos doentes tinham ido para o hospital dos peixes. Na verdade, os carás-bandeiras, ainda agonizantes, haviam desaparecido numa descarga do vaso sanitário. Luci aprendeu a dosar a comida dos peixes. Bastava uma pequena porção duas vezes ao dia, como ensinara o veterinário. E uma vez por semana, antes da escola, ela se deliciava com a renovação da água do aquário. Ficava horas trancada no banheiro, trabalhando com lentidão e minúcia (o breve momento em que segurava um peixinho lhe causava arrepios), até que a mãe avisava a hora da escola, com batidas fortes na porta. Numa tarde de inverno, de volta do colégio, Luci largou a bolsa no sofá da sala e correu para o quarto dos peixes. Vivia sob o medo de que o frio pudesse matá-los de repente. Contou os peixes, verificando se havia algum morto ou com sinais de doença. Estavam todos vivos, ágeis, abocanhando os minúsculos grãos de ração. Como fazia desde criança, ela se despiu, atravessou nua o corredor, entrou no banheiro. Ultimamente a mãe andava condenando este seu hábito. Os seios da menina já começavam a desabrochar em dois botões carnudos e cor-de-rosa. No banheiro, ansiosa para voltar aos peixes e com preguiça de enfrentar uma ducha, Luci sentou-se no bidê. Nunca o tinha usado, mas já havia surpreendido a mãe agachada ali algumas vezes. Abriu a torneira e sentiu o esguicho morno contra o seu sexo. Primeiro, ela teve cócegas. Depois deixou-se levar por uma sensação que nunca conhecera. Relaxou o corpo inteiro, fechou os olhos e então começou a ver peixes esguios, transparentes, luminosos e quentes penetrando em grandes cardumes pelo seu corpo.
(in Os contos premiados no concurso Unibanco de Literatura, 1978, conto de Nei Leandro de Castro)

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Areia Preta, noite de lua

Vê, amada, como a lua seduz o mar com o seu brilho e se afasta, se afasta em silêncio, deixando turbulências, ondas de frio, oscilações de amor e depois a explosão inútil das águas na areia. O teu silêncio é lunar, menina, viajo nele e tento recompor - como quem recompõe uma estrela despedaçada - os teus gemidos de gozo, o teu sexo de menina em estertor e glória sob o meu furor e sob a magia de tuas mãos. Faz tantos anos, olhávamos abraçados o coqueiro em extrema solidão de Areia Preta. Nenhum de nós, amantes eleitos por semideuses, poderia prever o esplendor e o abismo do silêncio sob uma lua consagrada como o sexo em quarto crescente. Lua que agora se afasta, iluminada e em silêncio e se afasta.
(in Autobiografia, Nei Leandro de Castro - Foto, Sandra Porteous)

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Anotações de leitura

"Todo ser humano é um resultado de pai e mãe. Pode-se não reconhecê-los, não amá-los, pode-se duvidar deles. Mas eles aí estão: seu rosto, suas atitudes, suas maneiras e manias, suas ilusões e esperanças, a forma de suas mãos e de seus dedos do pé, a cor dos olhos e dos cabelos, seu modo de falar, suas idéias, provavelmente a idade de sua morte, tudo isso passou para nós."
(in "O africano", J.M.G. Le Clézio)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Alice

(Foto, Sandra Porteous)
No dia 8 de novembro, o Rio amanheceu iluminado e nossos corações transbordaram de alegria com a chegada da Alice.

domingo, 16 de novembro de 2008

Cinco momentos do vinho (5)

5. O brinde Como o vinho, amadureça sua ternura, alongue o tempo nos jogos florais do amor. Acaricie: os pêlos de seda ou crespos como a cabeleira de um deus antigo e jovial que só por tédio esmagou as uvas. Prove do vinho nos cristais e na boca que está amealhando todos os beijos. Beba na taça redonda de um ventre. Sinta as carícias que conduzem ao céu da boca. Prove a ternura dos olhos, o morno alvorecer da pele, o corpo sazonado para a colheita, a entrega, a posse mútua. Depois: mais vinho. Fusão perfeita.
(in "Era uma vez Eros", Nei Leandro de Castro - Foto, Sandra Porteous)

Cinco momentos do vinho (4)

4. A alma das garrafas Aberta a garrafa, o vinho se liberta de corpo e alma: memória das primeiras vindimas, som de fauno iluminado por pirilampos, premeditação da alegria de um deus conduzido pelas colinas do mito. Aberta a garrafa, o vinho quer alguns minutos de silêncio e espera como o homem e a mulher no rito que precede o enlaçar dos corpos, as conquistas da língua, a viagem ao céu, véu palatino. Aberta a garrafa, cumpre resgatar a memória das sementes fecudadas no cio da terra, a invenção das uvas esmagadas, a origem do mosto posto em sossego. Em sossego, deite o vinho na translucidez de um cristal puro e beba. A alma das garrafas ilumina: castiçal que se acende no escuro.
(in "Era uma vez Eros", Nei Leandro de Castro - Foto, Sandra Porteous)

Cinco momentos do vinho (3)

3. O envelhecimento O vinho envelhece por sabedoria. Vai conquistando ao tempo corpo e alma, cor de rubi ou topázio ou cor da pele que reveste a fruta de cachos crespos como a cabeleira de um deus antigo e jovial. O vinho: é preciso carinho e maturação: paixão que aos poucos se aproxima da forma compacta e cinzelada por amor. O vinho envelhece por ternura das pipas de madeira que o envolvem como um abraço, um regaço, um ventre de onde retornará em nova vida, corpo, alma e espírito. Santo.
(in "Era uma vez eros", Nei Leandro de Castro - Foto, Sandra Porteous)

Cinco momentos do vinho (2)

2. A fermentação Sol posto. Um deus cansado de néctar dos deuses esmaga as uvas só por tédio e deixa o mosto abandonado a si mesmo. Assim a esmo, nasce o vinho sob a luz de estrelas liquefeitas. O deus bebe do suco ardente e aveludado e a cada gole sente que o tédio se dilui. Seus pés alados bailam como bailarinos na noite ao som de guizos e do vento alísio/elísio. Madrugada, o deus é conduzido por poetas cantando pelas colinas da mitologia sua embriaguez homérica. Alegria.
(in "Era uma vez eros", Nei Leandro de Castro - foto, Sandra Porteous)

CINCO MOMENTOS DO VINHO

1. A semeadura
Memória antiga. O amanhecer dos campos.
Um fauno dessedenta no caudal do rio.
Pirilampos iluminam a breve trégua
de corpos abraçados. O cio
da paisagem. A força da semente
rompe a terra da encosta em plena aurora
como quem rompe/irrompe um hímen.
A hora e o tempo se detêm na fadiga
das coisas simples: a margarida
que definha e morre.
Um hino em flauta equilibra a manhã
em claves de sol e solidão.
Com a testemunha ocular de um pássaro
um ramo verde vide vindima
sobe no caramanchão da tarde
que arde e paira e se desvaira
na fermentada paz depois do gozo.
(in "Era uma vez eros" poesia de Nei Leandro de Castro - foto, Sandra Porteous)

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Sinos e ventos da altura

O tom dos sinos
Escorrendo nas ladeiras.
Os ventos do Curvelo
E o cheiro morno do Silvestre.
Ponte dos Arcos,
Quantas brumas
Meus sapatos te tocaram,
Sós.
Santa Teresa.
As estrelas se mudaram para o chão.
(Zila Mamede, 1958 - foto, Sandra Porteous)

domingo, 2 de novembro de 2008

Mar, mar

"Thálassa, thálassa, quem me entenderia nesse grito xenofante hemiplégico diante do mar, ondas verdes e azuis e logo brancas, arrebentação onde os peixículos vão se proteger do dardo mortal das gaivotas que se despencam com precisão, mergulham e colhem o alimento de cada dia, a multiplicação dos pães marinhos, ágeis e escorregadios alimentos, cuja beleza deveria ser anfíbia para que eles não estertorassem quando saídos da água, mar, moto contínuo, thálassa, quem me entenderia?"
(in O Dia das Moscas, Nei Leandro de Castro - foto, Sandra Porteous)