sábado, 11 de agosto de 2012

Dádiva


Depois de tudo, filha, como oferta,
o que existe de mim e menos meu:
em tuas mãos imponderáveis eu
deponho o peso dessas mãos incertas
***
que não sabem sequer dizer adeus.
Dos meus olhos te entrego o claro-escuro
em ver as coisas sempre além do muro
erguido -- onde talvez se oculte um deus.
***
Da boca, esse silêncio que renovo
com palavras (porque, verás, não somos
nós). Não queria, filha, mas devolvo
***
a ti esse atavismo antigo: dor,
perplexidade. Guia-te. Tens como
centro de gravidade o meu amor.
(poema de Nei Leandro de Castro in Voz Geral, foto de arquivo do google)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Poema da Longitude


O pássaro
não levanta vôo em vão.
Ele avalia na brisa imprecisa,
o peso exato do seu coração,
e só depois viaja, vai além
das mesmas nuvens de ouro,
de camuflados tesouros,
além dos cúmulos-nimbos,
no meio de todas as texturas do azul
que tingem a vertigem
de um ponto qualquer da longitude sul.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra, foto do Googel) 

quinta-feira, 3 de maio de 2012

As lavadeiras do Baldo


Essas moças e mulheres
eram putas ou safadas?
Viam olhos espiando
ou não enxergavam nada?
Quando mostravam as coxas,
gostavam da exibição
aos olhos, à sede, à palma,
à louca masturbação?
Se suas roupas molhadas
deixavam à mostra os seios,
achavam isso normal?
E aquele escuro no meio?
Batendo roupa elas tinham
pensamentos libertinos?
**
O sexo se incendiava
sob a moita dos meninos.

(Poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia, ilustração de Caribé)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Nova canção do exílio

Já cruzei todos os mares,
bebi em todos os bares,
amei cento e dez mulheres,
sem falar em mal-me-queres
Já seduzi num minuto,
já fui chamado de puto,
andei por vários países,
desvirginei meretrizes.
Em Lisboa, em pleno inverno,
vi o céu e o inferno
nas coxas da namorada
que era bruxa e era fada.
Já fiz doutorado em línguas
com mestra da Califórnia,
verti para dez idiomas
a dura palavra esbórnia.
Tenho estrada, muito chão,
à sombra do Redentor,
cavando o gozo chiado
das cariocas em flor.
**
Mas que saudades que tenho
da Rua Professor Zuza,
dos assaltos aos maristas,
das turmas de boca suja.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia, foto de Sandra Porteous)


sábado, 14 de abril de 2012

Djalma Maranhão


Uma noite, logo depois da Anistia, fui ouvir uma palestra de Darcy Ribeiro na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro. No auditório com gente saindo pelo ladrão, Darcy - grande figura, erudito, excelente orador - começou a brilhar como uma constelação. Falou sobre as amarguras do exílio, o desejo de voltar que cresce nos exilados dia após dia, o frio dos invernos que fere como mil agulhas brancas. De repente, falou de um encontro que teve com Djalma Maranhão em Montevidéu. Em poucas palavras, traçou o pefil de Djalma, sua atuação política em Natal, seu projeto educacional revolucionário "De Pé no Chão Também se Aprende a Ler". Para Darcy, visivelmente emocionado, Djalma havia morrido no exílio de saudade e tristeza. Em Montevidéu, ele se recusava a aprender uma só palavra de espanhol, praticamente não se comunicava com os uruguaios que o acolhiam. Com os amigos brasileiros, Djalma conversava como se estivesse numa esquina, num bar ou num café de sua cidade, no meio de velhas amizades sempre renovadas. Natal era uma presença no seu coração. E uma ausência que o levou à morte, em julho de 1971. As palavras de Darcy Ribeiro trouxeram Djalma, de corpo inteiro, para perto de mim. Chorei, fazendo muito esforço para não soluçar.
(Texto de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela, foto autor desconhecido)

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Danilo Bessa, o Leo

Na primeira metade dos anos 1970, Danilo Bessa foi morar no Rio de Janeiro. Deixara São Paulo, onde tinha vivido na semiclandestinidade desde que fugira de Natal, em 1º de abril de 1964. No Rio, a repressão se tornara uma das mais violentas do país, a partir do sequestro do embaixador Charles Elbrick, em setembro de 1969. Os militares, principalmente os sanguinários da linha-dura, não podiam admitir que um grupinho tivesse a audácia de capturar o embaixador norte-americano para soltá-lo, quatro dias depois, em troca de 15 presos políticos. As prisões, as torturas e as mortes de ativistas políticos assumiram proporções assombrosas.
*
Foi por esse tempo que Danilo Bessa, condinome Leo, membro do Partido Comunista, passou a morar no Rio de Janeiro. Com problemas de dinheiro, sem condições de conseguir um exílio político, observando que alguns camaradas do PCB estavam optando por posições mais radicais, ele recebeu um convite para ingressar num grupo da luta armada. Aceitou, mas pediu um pequeno prazo para acertar detalhes e trocar idéias com outros camaradas. Nesse mesmo dia, Danilo, o Leo, conversou com Luís Ignácio Maranhão Filho, nosso professor de Geografia no Atheneu, alto dirigente do Partido.
*
Luis Maranhão ouviu as razões de Danilo com a paciência de um bom mestre e não fez perguntas. Depois, se levantou da cadeira onde estava, fixou os olhos no ex-aluno e camarada, por trás das lentes muito grossas dos óculos, e disse: "Eu conheço você desde menino, rapaz! Você não tem jeito pra matar um sibite, uma rolinha, um rola-bosta! Você já se viu matando um segurança de banco? Você já se imaginou atirando à queima-roupa num homem, mesmo que esse homem seja um soldado ou um bandido? Vai te aquietar, rapaz! Nas atuais circunstâncias, a luta armada é uma loucura. Não seja louco!" Danilo Bessa me contou algumas vezes essa história e sempre concluía que o prof. Luís Maranhão o havia livrado da morte. Quer dizer, entre tantos méritos, tantos atos de coragem e solidariedade, acrescente-se a Luís Maranhão mais esse gesto de grandeza: a de permitir que Danilo vivesse mais trinta e tantos anos entre nós. 


quinta-feira, 22 de março de 2012

Exercício

Posto que o amor é fruto, e não semente,
resta colhê-lo.
Alcança com a mão a fruta fálica,
toma-a entre os dedos tão de leve
que a faça vibrar, já sazonada
pelo calor que emanarás.
A penugem do pêssego (inventemos)
deve cair sobre os teus lábios e a boca
de avidez serena,
até que o fruto, feito pássaro,
tombe trespassado de chumbo.
Posto que o amor é amor,
cumpre sugar a flor, o pólen, o sal,
a cor da fruta vulvar disseminada,
seminada.
A linguagem do amor é infecunda
como um poema,
apenas lança o seu destino, tece
o fio bem finito do orgasmo:
órgão, asma.
Posto que o amor é tudo e nada
tese e síntese
linguagem que falo,
resta aviá-lo: imagem/fruto/falinguagem.


(Poema de Nei Leandro de Castro in Zona Erógena, tela de Swan Song)

segunda-feira, 5 de março de 2012

Cavaco Chinês II


Eu e meus irmãos Euclides e Berilo resolvemos aumentar a nossa limitada renda, fazendo uma fezinha no jogo do bicho, na venda do seu Calixtrato Batista. Jogando no burro, 05, e à tardinha saiu o resultado: 06, cabra. Tive a idéia de transformar o 05 em 06, o que fiz com muita habilidade. Os meus irmãos foram buscar o dinheiro do prêmio e seu Calixtrato não desconfiou de nada. Foi farra muita: sorvete, chocolate, guaraná, cinema, gibis, essas coisas boas da vida. No dia seguinte, os bicheiros descobriram a farsa e seu Calixtrato foi falar com meu pai. O velho capitão devolveu o que era devido, pediu desculpas ao comerciante e depois acertou as contas com os filhos. Ainda hoje rendo graças à nossa punição exemplar. Do contrário, eu poderia ser um distribuidor de uísque Old Stroessner, made in Paraguai. Ou um político com a pasta entupida de mensalão e contas em paraísos fiscais. Ou ainda o mestre-salas da Unidos da Corrupção, em rodopios no plenário da Câmara com a porta-bandeira ângela Jaburu.
(Texto de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela Crônicas, quadro de Rosangela Borges)

sábado, 3 de março de 2012

Cavaco-chinês

Pela rua Professor Zuza, a caminho do Sebo Vermelho, vi passar um vendedor de cavaco-chinês, tilintando o seu triângulo de aço. Comprei uns cavacos, dei uma mordida daquelas de menino guloso, e aí começaram a surgir lembranças da minha infância, em enxurradas, como ocorreu com Marcel Proust ao provar sua "madeleine". Apressei o passo, já pensando em acertar com Abimael Silva a edição dos sete volumes do meu romance autobiográfico. Mas ao chegar na avenida Rio Branco as minhas lembranças já estavam embaralhadas e diluídas. Comi o resto do cavaco-chinês, que não surtiu o efeito desejado, apenas me deu sede, frustração. As memórias da infância que se salvaram não ocupam duas laudas digitadas, mesmo assim vou colocá-las no papel, enquanto espero outra avalanche à maneira de Proust. Da próxima vez, pretendo experimentar grude de Estremoz como detonador de memória. Enquanto espero, ponho à mostra o que se salvou provocado pelo gosto de infância do cavaco-chinês.
***
Meu tio Miguel Leandro era tabelião em São Jósé de Mipibu. De vez em quando eu passava férias na sua casa, que ficava em frente a uma praça grande, com coreto, onde à tardinha as meninas passeavam numa direção e os meninos no sentido inverso. Era a passeata do flerte. Havia os olhares compridos e pidões dos pequenos machos e olhar dissimulado das fêmeas em flor. Elas também usavam um risinho baixo, com as mãos escondendo os dentes, e as mais ousadas sacudiam os cabelos, em gestos sensuais que lembravam as artistas de cinema. Zizi era a minha favorita por duas razões: sacudia os cabelos como ninguém e tinha sotaque carioca. Foi difícil, valeu uma peregrinação em torno da praça que talvez superasse os quilômetros do Caminho de Santiago, mas consegui chegar a Zizi. Ela não tinha tia: tchinha tchitchia. Pronunciava djia, noitche e outros sons que soavam como música aos meus ouvidos de apaixonado. No terceiro dia de namoro, Zizi me perguntou se eu tinha bicicleta. Gaguejei um pouco e disse: "Meu padrinho Dinarte me prometeu uma bicicleta como presente de aniversário de 15 anos. Só faltam três anos." Zizi deu uma risada e até o seu riso tinha sotaque do Rio de Janeiro. Mesmo debochado, era um riso lindo. Deu as costas, foi embora e no dia seguinte eu a vi pedalando a bicicleta de um concorrente meio abusado.
(Texto de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela Crônicas)

sexta-feira, 2 de março de 2012

Tango


Esta noite é mais do que noite. É noche.
E não admito, corazón, que haja deboche.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, foto autor desconhecido)

quinta-feira, 1 de março de 2012

Vendedor de Pássaros


Ao pássaro, o homem
(animal sem respeito)
não dá o direito
de escolha
entre o alpiste
e o não ser triste.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Feira Livre, foto autor desconhecido)

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Registro


Na tarde que arde
se a mulher disser: Aldebarã
vinte e sete mágicos
poetas e saltimbancos
correrão à procura de estrelas
que enfeitarção seu colo
dourado pela tarde.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra, foto de Sandra Porteous)