quinta-feira, 16 de junho de 2011

Um amor em Natal

Um amor que me lesse poemas
quando meus olhos glaucomatosos
exigissem minutos de silêncio.
Um amor que me levasse às falésias do sol
e lá de cima, tonto de anticrepúsculo,
me pedisse carícias duras quase impuras
e mais: penetrações.
Um amor que me escrevesse
trinta e uma vezes e mais trinta
toda vez que eu fugisse dos seus braços
para cumprir a penitência dos malditos.
Um amor que acompanhasse revoadas de santos
sobre a fortaleza, sobre o Potengi,
sobre o meu peito, a partir do santuário do seu sexo.
(poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Rua da Estrela

Vésper vinha se banhar
nas poças d'água da rua.
E quando a chuva era forte
cresciam as colisões
dos dez barcos de papel
navegando o meio-fio.
No casarão à direita
quase esquina com Apodi,
os pastoris encantados
do velho Miguel Leandro.
Um poeta, quase padre,
viveu nesse casarão
e fez fábula, fábula, fábulas
de palavra e cantochão.
O capitão Marranegra
mandava baixar o braço,
sofria mais que gritava,
fazendo papel de fraco.
Rua descalça, de areia,
território de batalhas,
meu reino para a menina
levantar a sua saia.
***
Se essa rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar,
voltava a ser da Estrela
e não José de Alencar.
(Poema de Nei Leandro de Castro in "Autobiografia)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Morcegos e outros bichos

Os dicionários não registram a expressão "pegar morcego", ou seja, andar pendurado nos estribos dos bondes, em ônibus ou caminhões, sem pagar ou sem autorização de quem conduz os veículos. O Aurélio registra "morcego" como o garoto que usa esse recurso. Errado, mas deixa pra lá. Afinal de contas os bondes já sumiram em quase todo o país (à exceção dos líricos bondes do bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro) e a velocidade dos ônibus e caminhões de hoje não permite que alguém se arrisque numa carona tão perigosa. No meu tempo, no tempo de Alex Nascimento, pegar morcego era uma das grandes aventuras de um pré-adolescente. Na subida da ladeiro do Baldo, o bonde tinha sua velocidade reduzida. Aí a turma se aproveitava para viajar de graça até pouco antes da rua Apodi, quando a velocidade do veículo voltava ao normal e uma descida do bonde em disparada poderia trazer problemas. O cobrador era mal-encarado e cruel. Perseguia os morcegueiros de maneira implacável, distribuía cascudos, gritava palavrões, mas não tinha jeito. No dia seguinte, a turma estava lá, concentrada no lugar onde o bonde subia a ladeira gemendo e chorando, para ser invadido em seus estribos. Essa era uma das diversões que o Baldo oferecia. A outra era o rio das lavadeiras, de onde Alex Nascimento não arredava pé, à espera de uma lavadeira mais distraída que mostrasse um palmo de coxa ou um vislumbre de seio. Sempre na companhia de um galego chamado Onan, Alex se escondia nas moitas à beira do riacho e fazia a festa.
***
Não dava para pegar morcego nos poucos carros que existiam em Natal. E os meninos pobres sonhavam com um passeio de carro ou um desfile de carnaval, pela Deodoro, a bordo de um daqueles luxos. Numa tarde, no meio de uma pelada, um carro atolou no areal que era a rua Apodi, à altura da rua da Estrela. O motorista propôs um acordo: se a turma desatolasse o carro, ele daria um passeio com alguns dos meninos. Foi uma algazarra. Em poucos minutos o carro estava livre e o dono, um homem rico, que depois faria carreira como político, arrancou com crianças nos estribos (sim, os carros tinham estribos) e no pára-choque traseiro. Todos saltaram, com exceção de Miguel Leandro Netto, o Miguelzinho, que logo depois se desequilibrou e caiu com a cabeça no chão. Miguelzinho desmaiou e o político seguiu sua carreira. Desde esse dia, decidi que jamais pegaria carona com político.
***
No território descampado da infância, a caça aos pombos era uma aventura com menos riscos do que pegar morcego em bonde ou confiar em promessa de político. O seu Petit, que morava na Princesa Isabel com a Apodi, criava pombos que faziam revoadas sobre nossas cabeças. Um dia, um menino do interior disse que a carne de pombo era muito boa, bem melhor do que a das rolinhas abatidas pela turma sem piedade. Um pequeno exército se armou com baladeiras e foi declarada guerra às avezinhas de seu Petit. Foi um descalabro de tiros certeiros e a hipótese foi confirmada: a carne de pombo era uma delícia. Muitos anos depois, num restaurante de Lisboa, pedi um pombo com recheio de amêijoas. Comi de joelhos, ao pé de uma musa de olhos verdes chamada Esmeralda. Uma das melhores comidas da minha vida.

(Crônica de Nei Leandro de Castro)