terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A velhice de Eros

O velho Eros está muito cansado,
até mesmo dos versos decassílabos.
Inclusive a palavra inclusive
tão mal-usada dói-lhe nos testículos.
**
Nos sonetos, com rima ou sem rima,
torra-lhe o saco - enorme - o enjambement,
uma invenção, acha ele, de poetinha
embolado e seboso. Poetastro
**
O velho fauno já tem cinquenta anos,
quinhentos, cinco mil, perdeu a conta,
perdeu toda a memória mitológica.
**
Mas guarda, essa figura de Aretino,
a memória feliz de suas fodas
e a soma dos pentelhos das amantes.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez Eros, ilustração Fauno de Barberini)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Poema


De tuas palavras
nasceram abismos.
A estrela do meu sonho indivisível
veio de espaços
e rolou por vertentes do obscuro.
Da terra que tornaste túmulo
surgiram flores amarelas
com raízes de luzes milenárias.
(Poema de Nei Leandro de Castro in O Pastor e a Flauta, quadro de Monet)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Soneto

Quando chegar setembro, tu serás
rainha de palácios desfolhados;
te vestirás de flores e de espelhos
e eu serei teu amante, primavera
**
que nunca vi, mas que percebo nas
tristezas dos invernos desolados:
que os invernos só têm razão de sê-los
para que exista o poeta à tua espera.
**
Te buscarei na floração do amor
(que repousa na seiva e nas sementes).
Então me sentarás, rei, sobre o trono
**
de rosas de verão. Morrerás entre
os meus braços, de súbito, sem cor.
 - Morrendo eu te direi versos de outono.
(Poema de Nei Leandro de Castro in O Pastor e a Flauta, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Poema do negro africano

Talvez fosse dia e gaivotas cegas
de azul pousassem na manhã,
mas a noite dormia no leito
onde chorei o meu primeiro canto.
Cantei por senzalas indormidas
- com voz igual a que nunca ouvi -
uma canção longínqua de procura
e os meus braços se alongaram para o eito.
Mas pelo mundo fiz-me herói involuntário:
todo o meu pranto milenar de angústia
desce invisível e se transforma em canto.
Uma estranha senhora cor da noite
teceu em meu peito uma harpa
da cor da lua incendiando o Nilo.
(Poema de Nei Leandro de Castro in O Pastor e a Flauta, foto de Mário Meir)

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Lisboa

Lisboa, outono do ano 2000. Numa viagem com três amigos queridos, eu quis ficar um dia sozinho, para ir em busca do tempo perdido pelas ruas da cidade que tanto amo. Saí à procura de bares que frequentei com o grande amigo Melo e Castro: todos demolidos. Caminhei pela avenida da Liberdade (Salazar morreu e não a inaugurou!), alimentando o sonho de ver Esmeralda surgir na minha frente, com seu sorriso de jasmim-do-cabo. Em vão. Fui à rua do Malpique, onde no passado levei o maior susto da minha vida: um tremor de terra que sacudiu Lisboa, durante 45 segundos, em fevereiro de 1969. Já não era rua do Malpique. Procurei Dona Manuela, que me alugava um quarto naquela rua: estava dormindo profundamente, como no verso de Bandeira. Meio triste, continuei a minha caminhada e, à hora do almoço, entrei num restaurante na rua Eça de Queirós, nº 7. Pedi uma garrafa de vinho, escolhi o prato, voltei a pensar na minha vida em Lisboa, no final dos anos 1960, cheia de ilusões e surtos de paixão. Acabei de almoçar, já ia pedir a conta, quando vi se sentar numa mesa, a uns cinco metros de onde eu estava, uma mulher bela, belíssima, capaz de seduzir uma confraria de monges. Pedi outra garrafa de vinho e, discretamente, fiquei me extasiando com a mulher linda, linda , sobre quem choviam olhares. Quando percebi que ela estava terminando a refeição, paguei a conta e, encorajado pelo vinho, me aproximei. "Por favor, senhora, posso lhe dar uma informação?", eu disse. Um pouco assustada, ela disse que sim. E eu fui adiante: "Eu gostaria de lhe dizer que você é a mulher mais bela que vi em toda a minha vida." Ela agradeceu, eu saí. Fora do restaurante, afogueado, senti um toque nas minhas costas. me virei. Era a belíssima. Figuei tão confuso que balbuciei qualquer coisa, trêmulo, e me afastei quase correndo.
(Trecho de crônica de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Declaração de amor


Luís da Câmara Cascudo, nossa maior referência intelectual, chamava Natal de "Noiva do Sol". Na verdade, de vez em quando o sol passa uma temporada fora, vai se enxerir lá pras bandas de Mossoró, mas o noivado continua. Na maior parte dos dias, o superastro começa a exibir seu ego, imenso e incandescente como o de certos escritores, às cinco da manhã. Natal tem a luminosidade de uma noiva feliz da vida.
**
Aqui pra nós, eu amo essa cidade. Não importa se o céu azul esteja ameaçado pelos gumes dos edifícios, que crescem como carrapateiras por toda parte. Não me incomoda a nova invasão dos holandeses (a primeira foi em 1633), agora com a ajuda de noruegueses, suecos, italianos, espanhóis e portugueses, que já tomaram Ponta Negra e já ameaçam, com seus batalhões de euros, as pobres muralhas do Alecrim. As coisas boas da cidade estão muito acima das invasões holandesas e das briguinhas domésticas.
(Extraído de uma crônica de Nei Leandro de Castro, foto Sandra Porteous)

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Soneto

Cobriram-se de musgo triste os muros
que se erguiam na rua, conservando
o equilíbrio da infância (o não poder
olhar por trás dos muros o segredo
**
da vida, apenas vê-lo em sonho, todo
cheio de auroras e pedaços de arco-
íris). Caíram pelo chão os altos
muros de outrora e mostram seixos, terra,
**
árvores mortas. É de pedra a rua
onde antes construí canais e barcos.
Não há ponte ligando essa distância
**
que vai do meu aceno a antigos gestos:
de ponte só me lembra a solidão
da noite com seus arcos de metal.
(Poema de Nei Leandro de Castro in O Pastor e a Flauta, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Por-do-sol na Lagoa

O sol, antes de ir embora,
derrama ouro na Lagoa Rodrigo de Freitas.
Os remadores vão em busca de amealhar este ouro.
Em vão.
(Texto de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Soneto

Unidos, nossos corpos fizeram sulcos
no ventre; um vento antigo transplantou
as sementes. E logo um girassol
rubro explodiu na noite transformada
**
em chão de íntimo amor. Havia o sul com os
ventos de gêlo em nossos medos (ou
era verão de fogo, mais que sol,
o que sentimos?). Renasceu do nada
**
e de tudo, da ausência e da presença,
o girassol noturno. O menor dos
gestos, o mais distante dos meus pensa-
**
mentos, o tatuaram frio, ardente,
em mim. E rubro, em nossos corpos nus,
o girassol espalhará sementes.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Voz Geral, ilustração Van Gogh)

sábado, 19 de novembro de 2011

Poesia


Depressa, poesia, venha depressa. Quero registrar a magia daquela cena rara, quando ela me ofereceu a sua nudez de mármore de Carrara.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Rua General Glicério

Em 1935, um empresário pernambucano, dono da fábrica Aliança, construiu em Laranjeiras um conjunto de dez prédios, doze andares cada. O arquiteto foi um frances, que também projetou, de um lado e outro da rua, calçadas de dez metros de largura. Essa rua é a General Glicério, uma das mais bonitas e tranquilas do Rio. Todas as calçadas possuem jardins com árvores frondosas e plantas bem cuidadas. Pássaros começam a cantar, pontualmente, a partir das quatro e meia da madrugada. Gilberto Amado morou, durante alguns anos, no prédio vizinho ao meu. Procurei saber quem foi o General Glicério. Nunca foi militar. Era um político paulista, Francisco Glicério, senador e ministro do governo Deodoro da Fonseca. Por puxa-saquismo, recebeu a patente de general. Mas essa biografia não prejudica uma das ruas mais charmosas do Rio de Janeiro. Aos sábados, há uma feira onde encontro mamão papaia vindo de Mossoró e cajus maravilhosos vindos do Piauí. Uma roda de chorinho encanta a todos.
**
Uma sabiá me desperta com o seu belíssimo canto a partir das quatro e meia da madrugada. Ele pousa numa árvore bem perto da janela do meu quarto e solta a voz. Deve ser um macho solitário, que canta e canta para atrair uma fêmea que não vem, que o desprezou por outro, que bateu asas e voou. Se eu pudesse, pediria por tudo a essa fêmea ingrata que volte para o ninho do maior cantor de Laranjeiras e arredores.
(Texto de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Inconfidência

No bar, eu sinto
a angústia de Melmoth à espera do absinto
que não vem.
Falo ao garçom do aniversário de uma infanta
digo versos de O'Flahertie. Não adianta.
O garçom não vê ninguém.
**
No bar, qualquer bar, fico à toa
a ver de longe uma malta de Pessoa´
que discute nonadas e poesia.
Valeu a pena o queijo fatiado?
Tudo vale a pena se o chope é gelado
e a alma vadia.
**
No bar, uma turma de mentirosos terminais
fala da Abissínia, de abismos, de abissais
amores e paixões.
Arthur, o belo, já navegou um navio
bêbado e hoje seu maior desafio
é conquistar garções.
**
No bar minha solidão é povoada
de uma legião barulhenta, atordoada
e quase feliz.
Ouço vozes, gritos, um palavrão: algavaria
e o allegro da Décima Sinfonia
do taciturno Luís.
**
Enfim, todo bar é multidão e solidão
em mim.
(Poema de Nei Leandro de Castro, in Diário Íntimo da Palavra. Foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Bairro das Rocas


O povo das Rocas é visto
pelo galo, ao amanhecer.
A manhã ali se põe
de pé antes de querer.
**
Por outra, ali a manhã
não mais serve ao seu fim:
em vez de acordar, acorda-a
o Mestre Valentim
**
No Cais do Canto do Mangue
é água mansa de rio,
apenas arrepiada
por uma onda de frio:
**
a pele cortada pela
lâmina corrente de ar
que sobre o dorso das águas
desce da noite do mar.
**
Dali os veleiros partem
todos a uma só hora
e transpõem a barra antes
que a transponha a aurora.
**
As mulheres que ficam não
esperam pelo seu homem.
Tudo é tão rotineiro
como sua antiga fome
**
ou como o feto anual
que lhes intumesce o ventre
ou, ainda, como a morte
de um tísico, seu parente.
**
Meninos sujos, sem cor
definida, fazem festa
nas poças frias de lama
da Rua da Floresta.
**
(O galo da torre, olhando,
humanamente tece
um canto rubro de amor
às crianças. Mas permance
**
- porque feito de metáfora -
silente na altaneira
torre cinza de azulejos.
E depois olha a Ribeira.)
(Poema de Nei Leandro de Castro in Romance da Cidade de Natal)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Pastoril



     Dois meses antes do Natal, o velho Honório começava a ensaiar o Pastoril. Pegava as meninas pobres do bairro e formava os dois cordões: o azul e o encarnado, a quem ensinava, com impaciência infinita, os versos de saudação ao menino Deus. Eram cinco meninas para cada lado, mais a Diana, que se vestia de azul e encarnado, em partes iguais.
Sou a Diana, não tenho partido
O meu partido é os dois cordões...
cantava a dianazinha magra, de cor encardida, sem os dois dentes da frente. Mas era muito difícil ser Diana. De repente, o velho Honório pulava de sua cadeira de palhinha, colérico:

     - O meu partido são os dois cordões! São, são os dois! Pela enésima vez, observe a concordância verbal. - A dianazinha tomava um susto enorme, corria chorando pra casa e não voltava mais, mesmo com a promessa de que ia ganhar roupa nova, uns tostões e muito confeito.
     O pastoril pra ser completo tinha que ter ainda a Borboleta e o Palhaço Isso era mais fácil de arrumar. Todo mundo queria se vestir com as roupas lindas da Borboleta que também cantava, mas ainda bem que seu Honório não se zangava com o que ela cantava, nunca pulava da cadeira com raiva da Borboleta.
     Há dois anos que o Palhaço incontestável era Rizete. Pintava o rosto com cortiça queimada e papel de seda vermelho desmanchado em água, vestia roupas dos irmãos mais velhos, umas botinas reiúnas e fazia o diabo. No ano de sua estréia, logo que entrou em cena, levantou a perna e fez a imitação mais perfeita de um peido altissonante.
     Ao palhaço era permitido tudo, por isso o velho Honório controlou sua estupefação. Mas bem que a cólera lhe subiu até a cabeça, deixou-lhe o rosto magro, escalavrado pelo tempo, com manchas vermelhas de ira. Em sua volta, todo mundo ria sem controle. Rizete apalpou o fundo das calças folgadas, fez uma careta inimitável e gritou:
     - Ih, me borrei! - E saiu correndo pra dentro de casa. Tinha comido muito bolo quente.
     Em volta do palco armado para o pastoril, com exceção do velho Honório, todo mundo gargalhava. A contramestra, num frouxo de riso, empapou de mijo o vestidinho azul e nessa noite o seu cordão ficou desfalcado.
(texto extraído do romance O Dia das Moscas de Nei Leandro de Castro, ilustração pintura em óleo de Lourdes Ferraz)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Uma viagem a Paris



Um dia desses fiz uma visita a Paris dos anos 20, na agradável e erudita companhia de William Wiser. Foi uma viagem deslumbrante em todos os sentidos. Na primeira visita a Montmartre, dei de cara com a Josephine Baker passeando com um leopardo preso a uma coleira prateada. A cidade e seus habitantes estavam tão acostumados com as esquisitices da cantora que só turistas e crianças paravam para vê-la desfilando com seu bichinho de estimação. William me levou à casa de Gertrude Stein e eu confesso que não gostei muito daquela mulher baixinha, parecida com uma índia asteca, mandona, sempre encangada com Alice Toklas. Alice, sim, era um doce de pessoa, de gestos meigos, suaves murmúrios. Estive na Shakespeare& Co., de Sylvia Beach, mulher que somava talento, amor aos livros e generosidade. James Joyce, sempre arrogante e exigindo favores de Sylvia Beach, estava lá, derreado numa poltrona ao fundo da livraria. Era um gênio posando de gênio. O autor de Ulisses, quando se permitia dialogar com alguém, encerrava o papo com a sentença: "Você precisa ajudar James Joyce." E muitos acabavam ajudando o irlandês genial, mas que os mecenas não se atrasasem nas remessas. Se a ajuda não chegava no dia combinado, Joyce escrevia ao caloteiro: "Eu ficaria muito feliz se so seu cheque mensal me chegasse pontualmente."
*
Vi Ernest Hemingway várias vezes, no Le Coupole e nos bares de Montparnasse, mas guardei uma certa distância. O autor de Paris é uma Festa, alto, fortão, gostava de lutar boxe e qualquer lugar poderia se transformar em ringue para suas exibições. Hemingway e Scott Fitzgerald estavam sempre se estranhando. Fitzgerald era irôico, vencia o adversário nas tiradas de humor, mas não suportaria meio round de luta, mesmo se Hemingway lutasse com um só braço. Irônico também era o compositor Erik Satie, que vi perambulando pelas ruas do subúrbio de Arcueil - solitário, excêntrico, místico, maravilhoso. Na solidão do seu apartamento, pouco maior do que uma cabine telefônica e que nunca passou por uma limpexa. Satie construiu uma obra que ocupa lugar de destaque na história da música moderna.
*
William Wiser é um cicerone incansável. Só repousa um pouco quando se senta em volta de uma mesa do Le Coupole ou da Closerie des Lilas, e pede um bom vinho. Ele faz um brinde àqueles que tiveram seus caminhos, seus talentos, cortados pela loucura ou pela morte prematura, como Zelda Fitzgerald, o poeta Hart Crane, Isadora Duncan e o romancista Raymond Radiguet. Mas a viagem não é para cultuar os mortos, tanto que William se recusa a visitar o cemitério Pére Lachaise, a maior concentração de mortos ilustres por centímetro quadrado. Ele prefere caminhar comigo pelo Jardim de Luxemburgo, luxo e luxúria de verdes.
(Crônica de Nei Leandro de Castro, in Rua da Estrela, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Registro


Na manhã em que você nasceu, Juliana,
havia prospecção de sangue no deserto de Ogaden,
um egípcio bem vestido perseguia de jato
o Prêmio da Paz doado pelo inventor da dinamite,
a Terra - nua, maníaco-depressiva, azul -
continuava o passeio em volta de si mesma
violentada pelos olhos lúbricos
de mil novecentos e setenta e oito satélites,
o índice médio de violações e crimes
permanecia em alta em todas as bolsas
(com uma brusca valorização em Jacarepaguá,
onde um homem pobre e violento foi morto a socos
por cidadãos pobres e pacíficos),
o povo que um dia você vai conhecer mais de perto
cumpria o prazo regulamentar de cinco dias
para gritar na rua e gastar todas as suas reservas,
depois do que voltava à mordaça
e ao trabalho diário a Cr$5,50 a hora,
proibido de gritar de fome, proibido de ver
a tortura, a violência, os sequestros decretados
em nome de uma teoria da relatividade democrática.
E no entanto, Juliana,
eu me lavava na ternura humana dos seus olhos
de repente abertos para o mundo.

(Poema de Nei Leandro de Castro, publicado em CantocontraCanto, escrito em fevereiro de 1978 - foto de Ron Robinson)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

E eu?


Sófocles disse: Maravilhas há muitas, mas nenhuma tão estranha e terrível como o homem.
***
Shakespeare disse: Os homens estão nas mãos dos deuses como moscas nas mãos das crianças. Brincam com eles até esmagá-los.
***
Shelley disse: Os poetas são os legisladores não reconhecidos pelo mundo.
***
Prudhomme disse: Deus é tudo o que me falta para compreendê-lo.
***
Napoleão disse: Construo meus planos de batalha com os sonhos de meus soldados adormecidos.
***
Brecht disse: Muitos reclamam contra a violência das águas do rio/mas ninguém fala da violência das margens que o comprimem.
***
Fernando Pessoa disse: O mais do que isto/É Jesus Cristo/Que não sabia de finanças/Nem consta que tivesse biblioteca.
***
E eu, porra, não digo nada?

(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, ilustração de Magritte)




segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ser ou não ser


Não quero mais pensar,
o pensamento dói.
Se eu tivesse entre as mãos
um crânio escarnado
(despojado do pensamento,
dos olhos, da metafísica
da calvície ou dos cabelos),
entre ser e não ser injusto
eu preferia jogar com ele
uma brilhante partida de futebol.



(Poema inédito de Nei Leandro de Castro)

domingo, 4 de setembro de 2011

Fantasias


Se Eros - oriundo do Caos inicial - existe,
todas as fantasias do amor são permitidas.
Escolho as armas: te quero amar na praça mais clara
de uma aldeia grega, com dois voyeurs morrendo
de enfarte ao ouvir os teus gritos insensatos.
Te quero na maciez da relva, às vésperas do beijo,
quando teus seios doem se a brisa sopra sobre eles.
Te quero transgredindo as leis, subjugando reis,
enquanto tomo conta dos teus pensamentos,
dos teus desejos inflamados como um rio em chamas.
Te quero aprendendo e praticando os segredos
que as velhas cortesãs francesas só confiavam a ciganas e poetas.
Te quero dançando embriagada entre cristais,
multiplicando vinte vezes e mais uma
a nudez e o meu desejo.
Se Eros - responsável pela harmonia do Cosmos - existe,
todas as fantasias são permitidas.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Os procedimentos

Não tenho muito para te dar,
a não ser os procedimentos da ternura
embalados pelo tempo,
envelhecidos com a dignidade dos vinhos.
Pertence igualmente a ti, amada,
esse ritual espelhado nos teus olhos,
repetido em teus menores gestos,
burilado pelas tuas mãos de fêmea.
Não, não vou te perder por meus desvarios,
por minha mínima e máxima culpa.
É preferível me perder e me achar
no teu provável fingimento jamais flagrado,
porque és fundamentalmente mulher.
Bem sabes: quando tua inteligência não alcança,
quando não é suficiente a tua sensibilidade,
te socorre uma intuição milenar,
caixa onde estão guardados todos os segredos
que me reconduzem a teus pés, a teus braços,
à gruta secreta sagrada do teu sexo.
Jamais abrirei essa caixa antiga como uma lenda grega,
não importa saber desses segredos,
desde que a tua intuição continue nos conduzindo
à febre, depois à lassidão, depois à harmonia
do encontro amoroso.
Aprendemos juntos, numa noite de abril ou em meio século,
que o fundamental para construir o amor
está em nossas falas, em nossos olhos,
no aprendizdo da linguagem dos nossos corpos.
Dessa elaboração, súbita ou tecida anos a fio,
surgem, irrompem, permanecem
os meus e os teus procedimentos de ternura.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra)

sábado, 16 de julho de 2011

Missa



Numa missa de domingo
na NotreDame de Paris,
o poeta Paul Claudel
viu o esplendor de Deus.
A mesma missa me trouxe
uma revoada de anjos
de sexo definido: meninas
nuas sob véus diáfanos,
iluminando a nave com sorrisos.
Do lado de fora, Deus reinava
sobre as águas do Sena,
sobre a Terra,
sobre a poesia.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Diário Íntimo da Palavra, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Gosto de cuspe





     O irmão, quatro anos mais velho, tinha muita coisa que eu não tinha. Começo de bigode, pentelho, gala, além de ser mais bonito.
     Eu ficava com muita vontade que ele morresse afogado naquelas vadiagens que ele fazia no rio, só pra se mostrar.
     Mais raiva eu tinha em festa de aniversário. Enquanto eu ficava pensando de que jeito ia tirar a menina bonita pra dançar, ele ia, muito enxerido, e pegava a menina que eu estava querendo.
     Quando a prima Malu chegou em casa, pra passar as férias, eu vi tudo. Meu irmão ia sair com ela, conversar com ela, contar histórias pra ela rir. E acabavam namorando.
     Foi o que aconteceu.
     A prima Malu era muito saída. De noite, depois do jantar, ela pegava a mão do meu irmão e dizia pra todo mundo ouvir:
     - Eu e meu namorado vamos sair. - Virava-se pra ele: - Não é?
     Saíam os dois de mãos dadas para a praça. Eu seguia de longe, escondendo a raiva e a vontade de chorar, porque eu amava Malu. Se ela quisesse eu casava com ela quando crescesse, ficava rico, dava tudo que ela bem quisesse.
     Não aguentava muito tempo vendo os dois rindo. Voltava pra casa, pegava uma folha de papel e tentava fazer um retrato de Malu, só pra mim. Mas não tinha jeito de acertar com os seus olhos grandes, a cara redonda, a boca de lábios grossos. Não tinha jeito.
     Parece que um dia o irmão quis fazer safadeza com Malu. Foi o que pensei quando ela voltou da praça mais cedo e disse pra mãe que estava cansada, ia dormir cedo. Pouco depois chegava o irmão, encabulado, sem olhar as pessoas nos olhos.
     Desse dia em diante deixaram de andar de mãos dadas e eu achei muito bom.
     A prima Malu só não tinha olhos pra mim. Depois do irmão, namorou vários meninos. Cada dia, um. Enjoava logo, passava pra outro - e eu sofrendo por causa da beleza dela, do riso dela, do jeito como ela falava, quase revirando os olhos:
     - Namorado meu não passa dos três dias. E olhe lá.
     O irmão já andava com outras e nem ligava pra Malu. Os dois eram bem parecidos nisso.
     Por acaso eu descobri um jeito de gostar ainda mais de Malu. Ela deixava a calcinha no banheiro quando saía do banho. Da primeira vez, mesmo com a porta fechada, eu olhei para os lados e o coração ficou batendo muito quando eu peguei a calcinha da Malu: era branca, de algodão, um pouquinho encardida nos fundos. Fiquei namorando a calcinha por muito tempo. Esticava seu elástico com dois dedos e imaginava a prima dentro dela, nuinha, bonita como só ela sabia ser. Subia uma quentura diferente dentro de mim, dava vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Era muito bom.
     Malu continuou esquecendo a calcinha e eu passe a demorar mais tempo no banheiro, assim que ela saía. Uma vez minha mãe bateu na porta:
     - Sai daí, menino, que demora é essa?
     Tomei um susto danado, porque naquele momento eu tava vestido com a calcinha da Malu, me olhando no espelho. Puxei a descarga do vaso e fui pra debaixo do chuveiro, para esfriar a quentura que tinha subido pro rosto e queimava minhas orelhas.
     Não sei se a mãe desconfiou, se falou alguma coisa com a sobrinha, mas a partir daquele dia nunca mais Malu esqueceu a calcinha no banheiro. E eu ficava cada vez mais doido por ela, que nem ligava, namorando todo dia um menino diferente, já tinha passado por todos os meus conhecidos.
     Arranjei um jeito de gostar mais dela e tirar a dor que ela fazia doer em mim. Ia pescar sozinho e quando não tinha ninguém por perto eu começava a falar:
     - Malu, meu amor.
     Começava baixinho, ia subindo a voz, subindo, até gritar bem alto:
     - Malu, Malu, eu amo você.
     Antes das férias terminarem, ela ainda namorou com meu irmão. Mas foi um namoro besta, cheio de briguinhas de lá e de cá, nenhum dos dois querendo dar o braço a torcer. E demorou só dois dias, ainda bem, porque eu vivia pensando em matar o meu irmão, botar veneno na comida dele, como uma vizinha tinha feito com o marido. Ou então dar uma paulada na cabeça dele, quando ele estivesse dormindo.
     - Esse menino anda muito jururu - disse minha mãe na mesa, na véspera de Malu voltar para casa.
     - É a idade - disse ela rindo.
     Eu me levantei da mesa e fui chorar lá no fundo do quintal. Quando o choro passou e ficou só o soluço, botei umas garrafas vazias em cima do muro e fiquei quebrando uma a uma com minha baladeira. Pensando na hora de Malu voltar: eu ficava com mais raiva. A pedra batia na garrafa, era caco pra todo lado: eu atirava na cabeça do meu irmão, da minha mãe e nos peitos de Malu.
     Quebrei todos os vidros, cansei da brincadeira. Então me sentei no chão e comecei a riscar na areia do quintal. Risquei quadros, rodas, casas, árvores. Apaguei tudo e desenhei bem desenhado o nome: Malu.
     Não vi quando ela chegou pelas minhas costas e leu soletrando:
     - Ma-lu.
     Quis sair correndo, mas ela me segurou pelo braço:
     - Seu bestinha.
     Me deixei ficar, olhando para os olhos grandes dela, com jeito de quem pede mas tem vergonha de pedir. Ela aproximou o rosto do meu, disse baixinho numa voz que eu não conhecia:
     - Sabe duma coisa? Eu gosto de você.
     E me deu um beijo na boca.
     Um beijo demorado, com gosto de cuspe.
(Conto inédito de Nei Leandro de Castro, ilustração do Museu de Arte Naif)

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Momento em Copacabana


Numa noite diluída pelo álcool pela antimemória
pela morte do lirismo nessa noite o adolescente
recostou a cabeça em desamparo no regaço da
infanta amada e chorou de pura paixão e morreu
e de repente ressuscitou com o cheiro morno de
sexo que dela emanava e a noite era densa tensa
como o arco de luz que o poeta desferiu de
Copacabana contra o infinito e então ele se
despiu e investiu contra o hímen despedaçado em
mil estrelas e penetrou e penetrou-se com fúria
adolescente enquanto pescadores iluminavam as
margens da noite com a chama prosaica dos archotes
noite acesa e quente como a paixão testemunhada
pela madrugada que assistia a tudo se transmudando
lentamente como a strip-teaser do inferninho
em frente enquanto o vento velho sátiro lambia
descaradamente - língua de cão e fauno - a sua
bunda voltada para o alto e para o mar.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez Eros)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Rodrigues Alves


O homem magro, moreno, com sobrenome de presidente da República, morava na Rua Potengi, bem perto do Atheneu, onde ensinava português. O salário de professor - porque sempre houve no país um criminoso aviltamento do salário desses profissionais - mal dava para Francisco Rodrigues Alves sustentar a família de quatro filhos. Viva modestamente, mas ninguém jamais o ouviu se queixar da sorte, do custo de vida, de nada. Sempre de paletó e gravata, ele enfrentava as adversidades com a mesma coragem com que enfrentava o verão natalense metido naquela roupa invernal.
*
Quando Rodrigues Alves veio ser nosso professor, no curso Clássico, a minha turma estava saindo de um trauma. O professor a quem ele sucedeu era um homem de um mau humor terrível, que chegava à sala de aula como se tivesse atravessado os círculos infernais descritos por Dante. Esse estado de espírito se refletia na ferocidade com que ele passava exercícios e dava notas. Teve sorte quem não se incompatibilizou com Camões para o resto da vida, porque o gênio lusitano só servia para análises sintáticas dificílimas. O mestre, que além de mau humorado era arrogante, lia em voz alta as besteiras cometidas por seus alunos e, em seguida, exibia um rosário de zeros. Nessas horas, ele esboçava um sorriso, pura zombaria. Portanto, na chegada do novo professor de português, a turma estava toda arredia, cheia de medos, alguns tinham ficado para trás, reprovados na matéria. Mas as primeiras aulas do professor Rodrigues Alves mostraram um homem cordial, sensível, que trazia autores clássicos para a sala de aula, não para maltratar ninguém, mas para despertar nos alunos o gosto pela leitura. Era apaixonado por Machado de Assis e transmitiu para muitos essa paixão. Não admirava muito as romantiquices de José de Alencar, que parecia um europeu travestido de índio, seguindo uma moda européia, cheio de mugangas de estilo, sob o sol dos trópicos. Gostava de alguns parnasianos, principalmente de Vicente de Carvalho e Olavo Bilac. Mas a Semana de 22, com Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira à frente, era para ele o grande marco da nossa literatura. Mesmo os alunos menos apegados à leitura começaram a visitar a biblioteca do Atheneu, dirigida por Zila Mamede, graças ao entusiasmo de Rodrigues Alves pelo romance, pelo ensaio, pelo conto, pela poesia.  As aulas de português se tornaram um prazer. O professor do ano anterior, um saco de mau humor, foi esquecido em algum dos círculos de Dante. Prevaleceram a bondade, a cordialidade, a alma sensível do professor Rodrigues Alves.
*
Alguns anos depois, encontrei o meu querido mestre no Rio de Janeiro. Morava num apartamento modesto, no bairro de Fátima, e amargava uma solidão de viúvo. Conversamos, lembramos os velhos tempos do Atheneu, ex-alunos que já se destacavam como advogados, médicos, jornalistas. Ele lembrou Machado de Assis, em sua viuvez dilacerante, e recitou o soneto que o gênio do Cosme Velho dedicou à amada morta: "Querida, ao pé do leito derradeiro..." E chorou, meio envergonhado, mas chorou.
*
Três alunos do professor Rodrigues Alves tornaram-se grandes amigos: Danúbio Rodrigues, filho do mestre, Odúlio Botelho e eu. Danúbio era um contador de estórias cheio de talento. Odúlio tinha uma voz melhor do que a do afetado Aguinaldo Rayol e enriquecia as serestas que fazíamos para as namoradas. Eu havia desistido de jogar futebol e não sabia o que ia fazer na vida.
(Crônica de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela, Crônicas)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Eros (Mitologia erótica 2)


Eros nasceu do Caos - é o que dizem.
Outras fontes o apontam
como resultado de uma homérica suruba.
Seria filho de Íris ou de Ilítia
ou de Artemis Crônia com Hermes.
Outra versão: Filho de Afrodite
(Afrodite era fogo) com Hermes.
O poeta não tem nenhuma obrigação
de saber essas mitologias todas.
Só sabe que nos puteiros romanos
Eros era conhecido como Cupido
e tinha o pênis assim pequenininho
como de um anjo barroco.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez Eros)

terça-feira, 5 de julho de 2011

Narciso (Mitologia Erótica 3)

Narciso só tinha olhos
para o seu rosto perfeito
e tremia de tesão
pelo seu corpo de macho.
Numa manhã de verão
Narciso se viu na fonte
e quis beijar os seus lábios
e afogar-se em desejos,
enquanto uma cotovia
- o coraçãozinho aos saltos -
se balançava e cantava
entre ramos de narciso.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez eros, tela de Caravaggio)

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Virtual

Estou nua, devassa, nua
diante do computador.
Sorrio, sussurro, solto gemidos:
estão de plantão, tesão,
todos os meus sentidos.
Já namorei pela telinha, bem louquinha,
muitos machos divinos maravilhosos,
ternos, safados, sacanetas
todos com fixação em minha xotinha,
na minha bundinha, nas minhas tetas.
*
Ah, vou sair, vou fazer logoff.
Chega, rapazes, não quero mais nada.
O mal desse sexo virtual
é que me lembra muito uma broxada.
(Poema de Nathália de Souza in
Poemas Devassos e uma Canção de Amor,
tela de Milton da Costa)

domingo, 3 de julho de 2011

A dádiva do encontro

No caos em que estão mergulhados os meus livros e papéis, encontrei uma preciosidade que julgava perdida: uma pasta contendo 12 poemas manuscritos de Carlos Drummond de Andrade, assinados pelo autor, e uma cópia xerox de um cheque do Itaú, no valor de 21.848,44 cruzados, datado de 5 de setembro de 1986. O cheque é nominal e o favorecido é Drummond. Por trás desses dados e números, há a história de um encontro a que já me referi algumas vezes. Hoje, depois de uma releitura do meu poeta brasileiro preferido, me vieram à lembrança, como num filme, todos os momentos que usufruí na sala do seu apartamento, numa rua de Copacabana. E me deu vontade de reviver esses instantes, sem receio de ser repetivo.
*
Costumo dizer que o encontro com Drummond foi o maior prêmio que a publicidade, em 30 anos de trabalho, me deu. Foi, sim. No segundo semestre de 1986, eu era vice-presidente de criação de uma agência de propaganda do Rio de Janeiro. Um dos nossos maiores clientes solicitou uma idéia ousada, de impacto, para o seu calendário de 1987. Depois de reuniões com o pessoal de criação, surgiu a idéia de um calendário com poemas inéditos de Carlos Drummond de Andrade. "Vocês estão voando muito alto, aterrissem, aterrissem", brincou o diretor-presidente da agência. Mas me deu permissão para ir adiante, sondar o poeta, saber se a idéia era viável.
*
Consegui o telefone de Drummond, fiz a ligação, falei do projeto da agência. Sem arrodeios, ele disse que achava boa a idéia, que escreveria os poemas. Quando perguntei quanto custaria o seu trabalho, ele disse: "Isso eu não sei dizer. Por favor, procure saber quanto pagam e me ligue quando souber." Consultei o diretor-presidente, chegamos a um acordo, voltei a ligar para Drummond. Ao ouvir o preço, o poeta disse, com voz alterada: "Quanto?" Repeti, temendo que estivesse aviltando o seu trabalho, mas ouvi dele: "Claro que faço. Nunca ganhei tanto dinheiro com poesia!"
*
Seriam doze poemas baseados em fotos fornecidas pela empresa. Fiz questão de levar as fotos ao apartamento do poeta, à rua Conselheiro Lafayette, 60/701, Copacabana. Um apartamento simples, imensamente enriquecido por quadros de Portinari, Di Cavalcanti, Pancetti, Cícero Dias. Em destaque, um retrato de sua filha Maria Julieta por Portinari. O poeta devia estar sofrendo muito de saudade, porque a conversa girou quase toda em torno de sua filha, que morava em Buenos Aires, com quem ele trocava cartas duas vezes por semana. A certa altura, Drummond se levantou, me pediu para acompanhá-lo e me mostrou o imenso baú onde guardava as cartas da filha amada. Era uma montanha de saudades, de declarações de amor.
*
Uma semana depois, fui buscar os poemas que ele havia escrito e levar o cheque de pagamento. Nessa manhã, ele falou sobre poetas, principalmente sobre Vinicius de Morais, de quem admirava a obra poética e os seus grandes amores. Mesmo provocado, não quis falar dele mesmo, nem de sua poesia. Mas ainda falou da filha e as lágrimas vieram a seus olhos. Esse encontro se deu em 5 de setembro de 1986. Em agosto do ano seguinte, Maria Julieta morreu. Aos 85 anos, o poeta suspendeu os remédios que controlavam a sua cardiopatia e, doze dias depois, 'se afastou da vida voluntariamente'.
(Crônica de Nei Leandro de Castro publicada na Tribuna do Norte)

sábado, 2 de julho de 2011

ABC da Morte de Federico Garcia Lorca

Surpreendo do teu bolso
armas com que te bateste:
as vogais e as consoantes
- em ti adaga e florete.
*
Ai, Federico Garcia,
Bateste o punho fechado
Contra as portas de la muerte
De repente entreabertas.
*
Estavas talvez com medo
Federico, pois querias
Guardar apenas da morte
Heras - horas - em que prendeste
*
Ignazio Sanches Mejías.
Jamais supuseste a morte
Literal, dentro dos canos,
Morte madrugada a dentro.
*
Não sei da rosa de espanto,
Ó Federico, que viste,
Pois não percebo o minuto
Quando mortal tu caíste.
*
Recolho de tuas mãos
Sujas de barro e de sangue
Tua última metáfora:
Uma rosa que ainda cresce.
*
Surpreendo do teu bolso,
do suprarreal colete,
as vogais e as consoantes
- em ti adaga e florete.
(Poema Nei Leandro de Castro in Canto Contra Canto, ilustração Salvador Dali)

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Um amor em Natal

Um amor que me lesse poemas
quando meus olhos glaucomatosos
exigissem minutos de silêncio.
Um amor que me levasse às falésias do sol
e lá de cima, tonto de anticrepúsculo,
me pedisse carícias duras quase impuras
e mais: penetrações.
Um amor que me escrevesse
trinta e uma vezes e mais trinta
toda vez que eu fugisse dos seus braços
para cumprir a penitência dos malditos.
Um amor que acompanhasse revoadas de santos
sobre a fortaleza, sobre o Potengi,
sobre o meu peito, a partir do santuário do seu sexo.
(poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia)

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Rua da Estrela

Vésper vinha se banhar
nas poças d'água da rua.
E quando a chuva era forte
cresciam as colisões
dos dez barcos de papel
navegando o meio-fio.
No casarão à direita
quase esquina com Apodi,
os pastoris encantados
do velho Miguel Leandro.
Um poeta, quase padre,
viveu nesse casarão
e fez fábula, fábula, fábulas
de palavra e cantochão.
O capitão Marranegra
mandava baixar o braço,
sofria mais que gritava,
fazendo papel de fraco.
Rua descalça, de areia,
território de batalhas,
meu reino para a menina
levantar a sua saia.
***
Se essa rua fosse minha,
eu mandava ladrilhar,
voltava a ser da Estrela
e não José de Alencar.
(Poema de Nei Leandro de Castro in "Autobiografia)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Morcegos e outros bichos

Os dicionários não registram a expressão "pegar morcego", ou seja, andar pendurado nos estribos dos bondes, em ônibus ou caminhões, sem pagar ou sem autorização de quem conduz os veículos. O Aurélio registra "morcego" como o garoto que usa esse recurso. Errado, mas deixa pra lá. Afinal de contas os bondes já sumiram em quase todo o país (à exceção dos líricos bondes do bairro de Santa Teresa, Rio de Janeiro) e a velocidade dos ônibus e caminhões de hoje não permite que alguém se arrisque numa carona tão perigosa. No meu tempo, no tempo de Alex Nascimento, pegar morcego era uma das grandes aventuras de um pré-adolescente. Na subida da ladeiro do Baldo, o bonde tinha sua velocidade reduzida. Aí a turma se aproveitava para viajar de graça até pouco antes da rua Apodi, quando a velocidade do veículo voltava ao normal e uma descida do bonde em disparada poderia trazer problemas. O cobrador era mal-encarado e cruel. Perseguia os morcegueiros de maneira implacável, distribuía cascudos, gritava palavrões, mas não tinha jeito. No dia seguinte, a turma estava lá, concentrada no lugar onde o bonde subia a ladeira gemendo e chorando, para ser invadido em seus estribos. Essa era uma das diversões que o Baldo oferecia. A outra era o rio das lavadeiras, de onde Alex Nascimento não arredava pé, à espera de uma lavadeira mais distraída que mostrasse um palmo de coxa ou um vislumbre de seio. Sempre na companhia de um galego chamado Onan, Alex se escondia nas moitas à beira do riacho e fazia a festa.
***
Não dava para pegar morcego nos poucos carros que existiam em Natal. E os meninos pobres sonhavam com um passeio de carro ou um desfile de carnaval, pela Deodoro, a bordo de um daqueles luxos. Numa tarde, no meio de uma pelada, um carro atolou no areal que era a rua Apodi, à altura da rua da Estrela. O motorista propôs um acordo: se a turma desatolasse o carro, ele daria um passeio com alguns dos meninos. Foi uma algazarra. Em poucos minutos o carro estava livre e o dono, um homem rico, que depois faria carreira como político, arrancou com crianças nos estribos (sim, os carros tinham estribos) e no pára-choque traseiro. Todos saltaram, com exceção de Miguel Leandro Netto, o Miguelzinho, que logo depois se desequilibrou e caiu com a cabeça no chão. Miguelzinho desmaiou e o político seguiu sua carreira. Desde esse dia, decidi que jamais pegaria carona com político.
***
No território descampado da infância, a caça aos pombos era uma aventura com menos riscos do que pegar morcego em bonde ou confiar em promessa de político. O seu Petit, que morava na Princesa Isabel com a Apodi, criava pombos que faziam revoadas sobre nossas cabeças. Um dia, um menino do interior disse que a carne de pombo era muito boa, bem melhor do que a das rolinhas abatidas pela turma sem piedade. Um pequeno exército se armou com baladeiras e foi declarada guerra às avezinhas de seu Petit. Foi um descalabro de tiros certeiros e a hipótese foi confirmada: a carne de pombo era uma delícia. Muitos anos depois, num restaurante de Lisboa, pedi um pombo com recheio de amêijoas. Comi de joelhos, ao pé de uma musa de olhos verdes chamada Esmeralda. Uma das melhores comidas da minha vida.

(Crônica de Nei Leandro de Castro)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cançãozinha de amor a uma máquina lubrificada

Eu sou o teu gigolô.
Todo os dias, te bato com força
e arrebato de ti a minha féria.
Gosto de ti assim lubrificada
como uma mulher no instante
de ser amada.
Arranco de tua intimidade,
de tuas entranhas,
muitas vontades
bem estranhas:
desejo de escrever poesia
quando sei que o dia
está mais para o trabalho, o trabalho
imutável como as cartas de um baralho.
Vontade também de te cornear
na tua frente, sobre a mesa
com uma mulher tão bela
que depois do amor me dê tristeza.
Mas, no fundo, eu te amo
nessa convivência mais ou menos fria.
Bato na tecla, escrevo: fala!
Permaneces muda
mas tua eterna submissão cala
no orgulho desse teu gigolô
que te bate, te bate, te bate com amor.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Madrigal

De binóculo
vejo a melancolia
da menina
que perpetra poesia.
Mas de que gosto mesmo
é de sua calcinha branca
como um papel intocado
que vislumbro
quando ela cruza as coxas.
Sob a calcinha
uma flor de pétalas roxas.
***
E onde fica a melancolia
da menina e sua poesia?

(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, ilustração de Edgar Degas)

sexta-feira, 13 de maio de 2011

A Menina do Pombo

Porque as mãos,
embora suaves
(duas conchas de pluma),
anulam as asas,
os olhos dão
a líquida ternura
da menina
ao pombo.
Porque a infância
além da moldura
se desprenderá
em busca do vôo,
os olhos da menina
são fontes onde
é suicida
o pombo.
(poema de Nei Leandro de Castro in Voz Geral, ilustração de Picasso)

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Correspondência

Na adolescência li "A Barca de Gleyre", um livro volumoso que reúne as cartas de Monteiro Lobato e Godofredo Rangel ao longo de muitos anos. A leitura me fascinou e talvez seja essa a origem da paixão que tenho pela correspondência. Já troquei ceentenas de cartas e só lamento ter rasgado as cartas das primeiras namoradas, das paixões desesperadas, dos amores perfeitos e imperfeitos. Mas tenho bem guardadas cartas de dois dos meus maiores ídolos: Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava.
Com a internet, a correspondência ganhou velocidade, mas perdeu em essência. Já não se escrevem cartas como antigamente, tudo ficou muito apressadinho, superficial, sem a beleza e o calor de antes. Mesmo assim, continuo tentando me corresponder, mandar e-mails, esperar o retorno que quase sempre não acontece. Está cada vez mais difícil manter uma correspondência, mesmo entre aqueles que são do ramo. Moacy Cirne, por exemplo, me manda uma média de quatro e-mails por semestre, o que não é pouco se comparado com Tácito Costa, que me manda, quando inspirado, um e-mail por ano. Os mais assíduos dos meus correspondentes são Homero Costa, que não falha, não atrasa, apesar dos seus afazeres de professor universitário; Geraldo Batista esta sempre me enriquecendo com suas tiradas de humor e demonstrações de amizade; o poeta paraense Pedro Galvão me envia com frequência e-mails longos, bonitos, poéticos. Até quando, não sei. A tendência, pelo que sinto, é a mensagem ficar cada vez mais curta, concisa, com o uso daquela abreviaturas ridículas como tb, abs, vc.
Às vezes, a correspondência via internet é invasiva, maldosa, prejudicial. Bom mesmo é saber que uma carta que digito para um amigo que mora em Lisboa, leva segundos para chegar às suas mãos. Bom é saber que a natalense Dália Wilcinski está muito bem na Califórnia, usando o seu talento, fazendo cursos, vivendo intensamente. E é sempre agradável receber notícias de Currais Novos, que me chegam com os bons poemas e a boa prosa de Maria Maria Gomes. De Caicó vêm voando as notícias de Oberdan Damásio, um grande e generoso amigo.
De vez em quando, um desconhecido entra na telinha. Recentemente recebi o e-mail de um certo Araújo. No espaço do assunto ele escreveu: "Estou morrendo de paixão! Socorro!" Era algo patético. Dizia o remetente: "Há uma semana, conheci uma garota de 25 anos, por quem me apaixonei nos primeiros vinte minutos de conversa. A beleza do rosto, as linhas do corpo, a sensibilidade, tudo nela me seduziu de uma maneira incrível. Perguntei o seu nome e ela respondeu com um sorriso lindo e debochado: "Dualiba, mas pode me chamar de Duá." E deu uma bela risada. Só me restou dizer que casaria com ela anteontem, que a levaria para a Grécia, para Honolulu, para a Polinésia Francesa. A bela sacudiu os ombros e disse: "Só quando você se transformar em Ojuara." "Depois de ler o seu romance, diz Araújo, "é que entendi o que Duá quis dizer. Por favor, o senhor pode me transformar em Ojuara?"
(Crônica de Nei Leandro de Castro in "Rua da Estrela - Crônicas")

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Lorquiana para a Feira de São Cristóvão

O sol de domingo explode
sobre um chão de alpercatas,
nas cabeças nordestinas,
no sal da carne-de-sol.
O pregão em voz cantada
vende também a saudade:
dor de espinho aprofundado
no peito de cada um.
O sarapatel servido
tem um cheiro de Alecrim
e no seu molho sangrento
bóiam vísceras cortadas,
um sabor tão sertanejo
que se mistura à farinha
e se mistura à cachaça
bebida de talagada.
O couro curtido espalha
mais um odor pela feira.
Este espaço não é Rio.
A legião de mascates
vinda do chão do Nordeste
conquistou o território
e nele cravou bandeiras
com brasões de jerimum.
São Cristóvão aos domingos
veste roupa de vaqueiro
toca viola, rabeca,
desafia em versos simples
quem gosta de pelejar.
Tem a peleja do Cão,
da moça que virou cabra
e dos heróis domingueiros
que procuram desafio,
só pra derrubar o medo
de não voltar à terrinha.

(Poema de Nei Leandro de Castro, ilustração autor desconhecido Galeria da Feira de São Cristóvão)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Feijão Tropeiro

Nas estradas de Minas se criaram,
ao sabor do improviso, muitos pratos
que honram a cozinha brasileira.
Este feijão famoso é bom exemplo.
***
Cozinhe os grãos somente n'água e sal,
cuidando que eles fiquem meio duros.
Leve o toucinho ao ponto de torresmo,
depois frite a linguiça na gordura.
***
Numa panela à parte, frite os ovos,
ponha cebola, sal, pimenta e alho,
misture os ingredientes com farinha.
***
Se o seu colesterol está em alta,
convém fugir correndo do tropeiro,
embora valha a morte em gozo extremo.
(Celso Japiassu e Nei Leandro de Castro in 50 Sonetos de Forno e Fogão)

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A canção de amor

O amor implode e a explosão
vai direto ao coração, para multiplicá-lo
como os pedaços de metais de uma granada,
romã caindo sobre um pátio de colégio
de freiras, numa sacrílega manhã.
O amor. Não procure apreendê-lo de estalo.
O amor, eu o fecundo nas trompas inflamadas
da mulher amada que está gritando
todos os plurais em ais.
Só o amor faz escrever versos de amor
e na prisão, a pão e água estagnada,
alguém prende aquela triste e leda madrugada
nos dedos. A rima dos versos é uma água no cio
que nasceu para ser cavalgada, emparelhada.
Parênteses: de repente dá vontade
de escrever: berceuse. Ou de dizer: boceta.
O amor está presente e se insinua
como o desejo de uma mulher grávida
que quer comer sua placenta crua.
O amor, coitado, sempre foi rosa nos versos
dos adolescentes com febre de sonetos
mas na minha canção, não,
ele jamais será tratado como tal.
Prefiro a paz nas alturas de uma nave espacial.
O amor está feliz numa sarjeta
e chafurda na poça que não reflete nada:
os pombos do poema há muito já se foram,
morreram de velhice, e a lua é uma frase de efeito
que já não brilha. O amor se basta em sua lama
e basta. O amor rompeu com a tirania lapidar
e quer somente cumprir o seu destino de semente,
um grito amargo, lisérgico, com contra-indicação
para os tiranos e os alérgicos.
O amor retumba na cabeça e é dor ciática, reflexa,
que intumesce a glande e cora os grandes lábios.
De repente, o amor se aninha entre lençõis
e já não dói. Mas é preciso guardar a sua chama
para o amor não esfriar como lábio do morto
ou o lado direito da cama onde pousou
o corpo de quem ama, o corpo de quem ama.
O amor do outro lado
está desintegrado em monóxido de carbono.
Veja: os abandonados que esperam em vão
no ponto da esquina vão respirando fundo,
lentamente, como quem aspira a morte.
E contra o amor em passeata, amor,
eles detonam gás lacrimogêneo,
cavalos investem no passeio, morre sob patas
uma mulher que não protege os seios.
O amor está no hospício tratado como vício.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Era uma vez Eros, foto de imagem do Google)

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Pra não dizerem que deixei de ser romântico e sensual

Brinco de compor teu corpo inteiro,
teu corpo claro mistério
em jogos de luz e sombra.
A haste do pescoço sustenta a flor do rosto
que bebe na seiva da região dos seios
onde formas arredondadas se eriçam: arrepios.
Um fio a prumo invisível desce do umbigo
ao abrigo das carícias, todas, lembradas
em manhãs e madrugadas. Claridade.
Ouso compor a maciez do púbis castanho,
escargots de pêlos que se aninham
à sombra da pele muito branca. Ali,
o pássaro-pássara do meu desejo
de plumagem molhada às primeiras carícias
ou aos sussurros que supõem a delícia
de amar, fazer amor, fazer doçuras,
doces loucuras, bagunça, estripulias
que você nem lembra se já fez um dia.
O retrato visto de outro ângulo, subjetivo:
o prazer da entrega que sobe dos pés,
ergue-se pelas colunas macias das coxas,
envolve o sexo e o torna umedecido,
vem linha reta até a boca, flor e sexo,
e se completa na luz e sombra desses olhos
que prometem jogos intensos de ternura,
tesão e travessias travessuras.
(Poema de Nei Leandro de Castro in Musa de Verão, ilustração de Modigliani)

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O sortilégio do mar

Vou fugir de mim mesmo.
Refugiar-me na sombra do mar.
Vou morar no seu silêncio
e beber meu olhar de sono
nas calçadas que perfuram o mar.
Levarei comigo
um piano cheio de escuro.
***
Quero sentir o frio horizonte
que se estende sobre o mar.
Fender meu corpo de disfarce
na luz que ilumina os frutos do mar.
Quero que me limitem entre os círculos,
azuis ou verdes, e a imagem
do crepúsculo, incendiado no mar.
Arqueadas estão as minhas mãos
nas suas redes, de súplica,
sossobradas. Mar,
espelho irremediável
de solidão, refletindo as faces
descomunais da minha única face
translúcida.
(Poema de Sanderson Negreiros in Fábula Fábula, foto de Sandra Porteous)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Caldo de cabeça de peixe

Lave a cabeça, esfregue com limão
e ponha em caldeirão de bom tamanho.
Acrescente dois litros d'água fria
com tomates, cebola, cebolinha.
***
Azeite, sal a gosto, coentro e salsa
vão completar a parte dos temperos.
Cozinhe em fogo leve, reduzindo
o caldo até ficar pela metade.
***
Passe por um coador o caldo quente,
nele despeje o molho de pimenta
e cachaça de boa qualidade.
***
Esta receita faz o casamento
perfeito da cachaça com o peixe,
que nunca poderão ver-se apartados.
(Poema de Celso Japiassu e Nei Leandro de Castro in 50 Sonetos de Forno e Fogão, ilustração de Di Cavalcanti)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Uma viagem no tempo

Os limites da cidade iam até a Avenida 15 (Bernardo Vieira), onde havia um posto fiscal, chamado Corrente, que fiscalizava saídas, entradas e bandeiras. A pista de asfalto, construída pelos americanos durante a Segunda Guerra Mundial, serpenteava entre dunas, silêncios e verdes até Parnamirim. Os outros limites, a leste e oeste, tinham mais esplendor: o rio Potengi e o mar de águas mornas.
Nas marés altas, os botos vinham brincar nas águas do Potengi. Nas marés cheias de medo, diziam alguns, os cações faziam expedições, furiosos, famintos, cortando as águas com a lâmina de suas barbatanas. Os meninos pescavam morés, pulavam da Pedra da Chapuleta ou desafiavam os cações, fazendo torneios de cangapés no meio do rio.
O mar era um latifúndio azul-turquesa ao alcance de todos. Perto da Fortaleza dos Reis Magos, estrela dos lusíadas, pétrea sentinela, havia o Poço do Dentão, com suas grutas, seus mistérios, sua inexplicável profundidade à beira-mar. Itamar, que depois seria personagem de romance, jurava de pé junto: numa das grutas do poço, havia um tesouro escondido pelo pirata Riffault. Todos os dias, os meninos pobres mergulhavam à procura da arca cheia de ouro e pedras preciosas. Viviam desse sonho.
Perto da Rua da Estrela, morava uma viúva sem filhos, jovem e bonita. Não saía de casa, não cumprimentava ninguém, não devolvia a bola que caía nos seus domínios. Numa tarde, os meninos olhavam pelas brechas do portão, em busca de mais uma bola perdida, quando surgiu um daqueles alumbramentos de que fala Manuel Bandeira. A viúva brincava com seu cachorrinho, dançando e levantando a saia para o animal, que corria à sua volta. As coxas eram roliças e a calcinha, ai!, era de cor clara. Naquele dia, houve jogos olímpicos em homenagem a Onan.
Nas matinês do cinema Rex, nossos sonhos cavalgavam na garupa do cavalo do Zorro. Ajudávamos o herói a esmurrar o vilão e também queríamos beijar a mocinha, mas isso o amigo de máscara negra não permitia. Tão difícil quanto beijar a namorada do herói dos seriados era beijar a namorada de verdade. O namoro tinha suas regras rígidas: com duas semanas, ela permitia pegar na mão; com três semanas, um beijo no rosto; com um mês, um beijinho na boca, mas nada de prospecções de língua. A mocinha que permitisse mais do que o estabelecido corria o risco de ficar falada.
Bons tempos, mesmo com essas restrições. As ruas descalças, o rio, o mar, os vastos espaços nos levavam a descobertas, aventuras, saudáveis estripulias. Desde cedo, os meninos aprendiam a desafiar perigos. Havia mendigos valentões, que odiavam os seus apelidos e poderiam ferir gravemente um daqueles pirralhos com uma pedrada certeira ou um murro no pé do ouvido. Mas nenhum mendigo podia passar perto da turma, sem ouvir o seu apelido gritado em coro. "Caju Azedo! Cadê a castanha?", ele dizia que as nossas mães, coitadas, guardavam a castanha num lugar muito reservado lá delas... Ah, Natal da minha infância, gaveta de sonhos, território das minhas grandes amizades.
(Crônica de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela, foto do Forte dos Reis Magos de Sandra Porteous)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Manhã de verão

No retângulo da sala
as paredes brancas
em pintura de cal
recente. Mais brancas
na semeadura de luz
da manhã de verão
em dezembro. Tão de luz
castigada que o antes
transparente ar, denso,
inunda o espaço: bloco
de peso não medido:
claridade prisioneira
entre teto e piso
e paredes da sala:
ar e luz palpáveis
em serem compactos
na vertigem do sol:
dezembro, dezembro.
(Poema de Luis Carlos Guimarães in A Lua no Espelho)