sexta-feira, 15 de julho de 2011

Gosto de cuspe





     O irmão, quatro anos mais velho, tinha muita coisa que eu não tinha. Começo de bigode, pentelho, gala, além de ser mais bonito.
     Eu ficava com muita vontade que ele morresse afogado naquelas vadiagens que ele fazia no rio, só pra se mostrar.
     Mais raiva eu tinha em festa de aniversário. Enquanto eu ficava pensando de que jeito ia tirar a menina bonita pra dançar, ele ia, muito enxerido, e pegava a menina que eu estava querendo.
     Quando a prima Malu chegou em casa, pra passar as férias, eu vi tudo. Meu irmão ia sair com ela, conversar com ela, contar histórias pra ela rir. E acabavam namorando.
     Foi o que aconteceu.
     A prima Malu era muito saída. De noite, depois do jantar, ela pegava a mão do meu irmão e dizia pra todo mundo ouvir:
     - Eu e meu namorado vamos sair. - Virava-se pra ele: - Não é?
     Saíam os dois de mãos dadas para a praça. Eu seguia de longe, escondendo a raiva e a vontade de chorar, porque eu amava Malu. Se ela quisesse eu casava com ela quando crescesse, ficava rico, dava tudo que ela bem quisesse.
     Não aguentava muito tempo vendo os dois rindo. Voltava pra casa, pegava uma folha de papel e tentava fazer um retrato de Malu, só pra mim. Mas não tinha jeito de acertar com os seus olhos grandes, a cara redonda, a boca de lábios grossos. Não tinha jeito.
     Parece que um dia o irmão quis fazer safadeza com Malu. Foi o que pensei quando ela voltou da praça mais cedo e disse pra mãe que estava cansada, ia dormir cedo. Pouco depois chegava o irmão, encabulado, sem olhar as pessoas nos olhos.
     Desse dia em diante deixaram de andar de mãos dadas e eu achei muito bom.
     A prima Malu só não tinha olhos pra mim. Depois do irmão, namorou vários meninos. Cada dia, um. Enjoava logo, passava pra outro - e eu sofrendo por causa da beleza dela, do riso dela, do jeito como ela falava, quase revirando os olhos:
     - Namorado meu não passa dos três dias. E olhe lá.
     O irmão já andava com outras e nem ligava pra Malu. Os dois eram bem parecidos nisso.
     Por acaso eu descobri um jeito de gostar ainda mais de Malu. Ela deixava a calcinha no banheiro quando saía do banho. Da primeira vez, mesmo com a porta fechada, eu olhei para os lados e o coração ficou batendo muito quando eu peguei a calcinha da Malu: era branca, de algodão, um pouquinho encardida nos fundos. Fiquei namorando a calcinha por muito tempo. Esticava seu elástico com dois dedos e imaginava a prima dentro dela, nuinha, bonita como só ela sabia ser. Subia uma quentura diferente dentro de mim, dava vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Era muito bom.
     Malu continuou esquecendo a calcinha e eu passe a demorar mais tempo no banheiro, assim que ela saía. Uma vez minha mãe bateu na porta:
     - Sai daí, menino, que demora é essa?
     Tomei um susto danado, porque naquele momento eu tava vestido com a calcinha da Malu, me olhando no espelho. Puxei a descarga do vaso e fui pra debaixo do chuveiro, para esfriar a quentura que tinha subido pro rosto e queimava minhas orelhas.
     Não sei se a mãe desconfiou, se falou alguma coisa com a sobrinha, mas a partir daquele dia nunca mais Malu esqueceu a calcinha no banheiro. E eu ficava cada vez mais doido por ela, que nem ligava, namorando todo dia um menino diferente, já tinha passado por todos os meus conhecidos.
     Arranjei um jeito de gostar mais dela e tirar a dor que ela fazia doer em mim. Ia pescar sozinho e quando não tinha ninguém por perto eu começava a falar:
     - Malu, meu amor.
     Começava baixinho, ia subindo a voz, subindo, até gritar bem alto:
     - Malu, Malu, eu amo você.
     Antes das férias terminarem, ela ainda namorou com meu irmão. Mas foi um namoro besta, cheio de briguinhas de lá e de cá, nenhum dos dois querendo dar o braço a torcer. E demorou só dois dias, ainda bem, porque eu vivia pensando em matar o meu irmão, botar veneno na comida dele, como uma vizinha tinha feito com o marido. Ou então dar uma paulada na cabeça dele, quando ele estivesse dormindo.
     - Esse menino anda muito jururu - disse minha mãe na mesa, na véspera de Malu voltar para casa.
     - É a idade - disse ela rindo.
     Eu me levantei da mesa e fui chorar lá no fundo do quintal. Quando o choro passou e ficou só o soluço, botei umas garrafas vazias em cima do muro e fiquei quebrando uma a uma com minha baladeira. Pensando na hora de Malu voltar: eu ficava com mais raiva. A pedra batia na garrafa, era caco pra todo lado: eu atirava na cabeça do meu irmão, da minha mãe e nos peitos de Malu.
     Quebrei todos os vidros, cansei da brincadeira. Então me sentei no chão e comecei a riscar na areia do quintal. Risquei quadros, rodas, casas, árvores. Apaguei tudo e desenhei bem desenhado o nome: Malu.
     Não vi quando ela chegou pelas minhas costas e leu soletrando:
     - Ma-lu.
     Quis sair correndo, mas ela me segurou pelo braço:
     - Seu bestinha.
     Me deixei ficar, olhando para os olhos grandes dela, com jeito de quem pede mas tem vergonha de pedir. Ela aproximou o rosto do meu, disse baixinho numa voz que eu não conhecia:
     - Sabe duma coisa? Eu gosto de você.
     E me deu um beijo na boca.
     Um beijo demorado, com gosto de cuspe.
(Conto inédito de Nei Leandro de Castro, ilustração do Museu de Arte Naif)

Nenhum comentário: