domingo, 20 de junho de 2010

O amor

Na selva amazônica, a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.
- Te cortaram? - perguntou o homem.
- Não - disse ela. - Sempre fui assim.
Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:
- Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amadurecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.
Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e deixou que lhe aplicasse as pomadas e os ungüentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:
- Não te preocupes.
Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A lembrança das frutas enchia sua boca de água.
Uma tarde, o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:
- Encontrei! Encontrei!
Acabava de ver o macaco curando a macaca na copa de uma árvore.
- É assim - disse o homem, aproximando-se da mulher.
Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso de flores e frutas invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta a formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.
(André Marcel D'Ans in La verdadera Biblia de los Cashinahua, ilustração autor desconhecido da tribo Cashinahua)

sábado, 19 de junho de 2010

Canção de outono para Verlaine

Como folha que morre
e ninguém a socorre,
em passo lento
o bêbado perene
do pobre Verlaine,
ao relento
com frio e sono,
vaga pelas ruas
com as árvores nuas
do outono.
***
À luz de velas
em tasca de Bruxelas,
com absinto e morfina
afoga a solidão.
Ao som da viola louca
e com voz rouca
em surdina,
chora na canção
que fez para Rimbaud,
que o deixou
só, com seu amor
e sua dor.
(poema de Luis Carlos Guimarães in O fruto maduro, foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Romance da Cidade de Natal

PREFÁCIO
Uma cidade não se abre
fácil, como um guarda-chuva,
a quem sequer não a tem.
Uma cidade é como a luva:
***
sem o gesto e a medida
exatos de quem a calça,
jamais se entrega a alguém
por mais força que se faça
***
para tê-la ou possuí-la.
Pode tê-la, mas sem uso,
simples adorno ocultando
a sua alma ao intruso.
***
Mas possuí-la, através,
de um exercício constante
de amor e contemplação
é ver o quanto de amante
***
uma cidade esconde em si.
Ao menor gesto, qualquer,
que venha de quem a ama,
ela transcende: mulher.
***
Mulher lânguida que, amada,
mais ama além, sobre a dor.
E nos devolve em silêncio
o que lhe damos de amor.
***
Silêncio que pensa no homem
o seu ingênito pasmo,
como a paz que nos oferta
a mulher depois do orgasmo.
***
Natal não foge à regra
que a experiência assinala.
Íntima, entre o rio e o mar,
se estende. Convém amá-la.
(poema de Nei Leandro de Castro, foto de Sandra Porteous)

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Matinê do Cinema Rex

Foi na tela ou na platéia
Foi verdade ou ficção?
O menino não consegue
responder essa questão?
O filme já começado,
Tom Mix herói, bonito,
a mocinha suspirando,
que coração mais aflito.
A emoção bate nas têmporas,
um lugar vazio ao lado.
Uma mulher perfumada
ocupou aquele espaço
e alguns minutos depois
(Tom Mix briga tão bem!)
faz carinho no seu braço.
Depois levou o carinho
para o sexo endurecido,
enquanto o caubói brigava
com três ou quatro bandidos.
Veio a explosão do gozo
mais forte do que os socos
do herói destemido, audaz.
A mulher se levantou
e se foi pra nunca mais.
(poema de Nei Leandro de Castro in Autobiografia)

terça-feira, 15 de junho de 2010

A lua das raposas

"- Quando eu vejo a lua assim desse tamanho e todo mundo olhando pra cima e dizendo que lua mais bonita, eu não acho nada de boniteza nela, porque essa desgraçada só tem me feito sofrer, desde menino. Então, inda não contei? É bom começar do começo. Em noite de lua todo mundo sabe que corre muita raposa doida. No tabuleiro onde a gente morava, nem se fala, tinha noite que a gente matava dez, vinte raposas, juro por Deus. Muita raposa, sim. Basta dizer que nossa casa, que não tinha riqueza mas era grande, com seis quartos e muito alpendre, era toda forrada com couro de raposa. Forro no chão e na parede. Meu pai foi um grande matador de raposa doida. Pois foi numa noite dessa de lua amojada que uma raposa entrou lá dentro de casa e eu, com dois anos de idade, estava brincando e nem dei fé que a bicha vinha me estraçalhar. Só que meu pai foi mais ligeiro: pegou a bicha pelo pescoço e começou a lhe dar uns baques, cada qual o mais forte, capaz de matar um gato. Contei quarenta e duas quedas. Como? Pergunta mais besta. Então você não está cansado de saber que lá em casa com dois anos todo mundo já sabe a taboada de cor e salteado? Mas deixe contar a história ou então não conto mais. Como eu ia dizendo: depois de levar quarenta e duas quedas do meu pai, não é que a danada se fingiu de morta? Foi meu pai dar as costas pra ir buscar o facão modo tirar o couro dela, a infeliz me abocanhou bem aqui, pode ver, arrancou um naco de minha perna. Não queira nunca levar mordida de raposa doida. A desgraçada mordeu e acabou de morrer, também com tanto baque, né? Mas deixou a ferida saindo sangue de seringada, me lembro como se fosse hoje. Nisso o meu pai, com licença da palavra, verteu água em cima do sangue, que é o melhor remédio pra mordida de raposa doida. Tive febre de quarenta graus quase um mês, minha mãe já pensando que não ia me criar. Escapei, tou aqui vivinho contando a história, mas não gosto de lua cheia, sabe por quê? Toda vez que a lua fica grandona assim, a ferida da perna se dana pra doer, me dá febre, formigamento no corpo, zoada nos ouvidos e uma vontade danada de sair pelos tabuleiros matando galinha de dentada.
- Mentiroso!
O galego Assis levantou-se da cadeira tão ágil quanto uma raposa:
- É a puta que pariu!"
(texto de Nei Leandro de Castro in O dia das moscas, foto de Mário Meir)

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Eros

Eros nasceu do Caos - é o que dizem.
Outras fontes o apontam
como resultado de uma homérica suruba.
Seria filho de Íris ou de Ilítia
ou de Artemis Crônia com Hermes.
Outra versão: filho de Afrodite
(Afrodite era fogo) com Hermes.
O poeta não tem nenhuma obrigação
de saber essas mitologias todas.
Só sabe que nos puteiros romanos
Eros era conhecido como Cupido
e tinha o pênis assim pequenininho
como de um anjo barroco.
(poema de Nei Leandro de Castro in Era Uma Vez Eros, pintura de Baudry)

domingo, 13 de junho de 2010

O pastor e a flauta

A flauta entre os seus dedos era infância
relembrança de azul, verde rebanho
repousando nas águas o cansaço
que o pôr de sol deixava em suas lãs.
***
Era música andando na distância
perdida das colinas. Era banho
de orvalho no silêncio do céu aço
forjado pelo fogo das manhãs.
***
Era vestígio de mulher ausente
feita de lã e paz, sol e canção
(que jamais nos virá: só se pressente).
***
A flauta era saudade e já não era:
morto o pastor, a bôca e os dedos não
mais inventavam sóis de primavera.
(poema de Nei Leandro de Castro in O Pastor e a Flauta, 1961 - quadro de Renoir)

sábado, 12 de junho de 2010

Antônio de Castro

Nos anos 40, em Caicó, um tenente da Polícia saiu à frente de uma tropa à procura de um assassino perigoso. O bandido, que tinha muitas mortes nas costas, foi localizado entre uns lajedos e começou a atirar. Depois de intenso tiroteio, o matador se rendeu: tinha um ferimento no braço e sangrava muito. Os solddos tomaram a arma dele, improvisaram uma atadura e iniciaram a caminhada de volta para a cidade. A certa altura, sob um sol de rachar moleiras, o bandido começou a se queixar de sede. O tenente sabia que os feridos a bala sentem uma sede imensa, quase mortal. No meio do caminho, ao avistar um casebre, o tenente resolveu pedir água para o prisioneiro e ordenou que ele o acompanhasse. De repente, o grito de um soldado: "Cuidado, tenente!" O oficial se virou e viu que o criminoso havia retirado uma peixeira escondidaem algum lugar do seu corpo. Não houve tempo para nada. O bandido levantou com as duas mãos a faca de doze polegadas e cravou-a no próprio peito. Ninguém o teria impedido de assassinar o militar.
O tenente voltou para Natal, fez carreira na PM e foi reformado como coronel. Ele costumava contar essa e outras histórias a seus filhos, que eram oito, na pequena casa da rua Professor Zuza. Como um oficial da Polícia, que cultivava a honestidade e a honradez, podia sustentar uma família tão numerosa? Não era fácil, mas era possível. Criativo, incansável, ele abriu uma fábrica de sabão no quintal dessa casa e à noite e nas folgas do quartel, com o auxílio de dois ajudantes, fabricava um sabão de boa qualidade e preço baixo, preferido por todas as lavadeiras dos arredores. O coronel Antônio de Castro era também um leitor assíduo e atento - um caso raro entre os seus colegas de farda. Trazia para a mesa os seus autores preferidos e citava trechos e mais trechos de memória. Encabulava a recatada esposa quando recitava os versos fesceninos de Bocage, um dos poetas que ele mais admirava.
Foi o coronel Antônio de Castro quem me apresentou a um romance de Jorge Amado e me induziu, irremediavelmente, ao vício da leitura. Tenho uma lembrança muito nítida dele, sentado numa cadeira de balanço, lendo um livro volumoso de capa verde. Fiz perguntas e ele me disse que aquela não era ainda leitura para mim e que fizesso o favor de não ler o livro às escondidas. Um dia, não resisti, dei uma olhada e descobri que o livro, em muitos volumes, tinha o título de Memórias de Casanova. Mesmo dominado pela curiosidade, não tive coragem de me aprofundar na leitura. O coronel não admitia insubordinação.
Muitos anos depois, num sebo do Rio de Janeiro, eis que me deparo comos dez volumes das memórias, cheias de conquistas amorosas, erotismo e aventuras, de Giacomo Casanova de Seingalt. Comprei na hora esses livros que me emocionam até hoje, porque me fazem lembrar, com muita clareza, um homem corajoso, cordial, íntegro, inteligente e muito amoroso com sua mulher, dona Alice, e com seus filhos. Modéstia à parte, Antônio de Castro era o meu pai.
(crônica de Nei Leandro de Castro publicada na Tribuna do Norte)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Soneto das variações

Branca praia da minha adolescência
absorta em breves flores de canção.
Calaram-se meus ecos luminosos
de crença numa Estrela da Manhã.
***
Branca praia perdida na falência
de infante mundo, azul contemplação,
fendeu-se em mil detalhes pantanosos
bebenda a minha Estrela da Manhã.
***
Não mais a branca praia como outrora
-festa de búzios com risos de lua
no meu encantamento de menina.
***
Pesada e real, diversa é a praia agora:
se toda eu quero inteira a areia, o mar,
afogo os meus desejos na retina.
(Poema de Zila Mamede in Rosa de Pedra 1953, foto de Sandra Porteous)