quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Inconfidência

No bar, eu sinto
a angústia de Melmoth à espera do absinto
que não vem.
Falo ao garçom do aniversário de uma infanta
digo versos de O'Flahertie. Não adianta.
O garçom não vê ninguém.
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No bar, qualquer bar, fico à toa
a ver de longe uma malta de Pessoa´
que discute nonadas e poesia.
Valeu a pena o queijo fatiado?
Tudo vale a pena se o chope é gelado
e a alma vadia.
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No bar, uma turma de mentirosos terminais
fala da Abissínia, de abismos, de abissais
amores e paixões.
Arthur, o belo, já navegou um navio
bêbado e hoje seu maior desafio
é conquistar garções.
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No bar minha solidão é povoada
de uma legião barulhenta, atordoada
e quase feliz.
Ouço vozes, gritos, um palavrão: algavaria
e o allegro da Décima Sinfonia
do taciturno Luís.
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Enfim, todo bar é multidão e solidão
em mim.
(Poema de Nei Leandro de Castro, in Diário Íntimo da Palavra. Foto de Sandra Porteous)

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Bairro das Rocas


O povo das Rocas é visto
pelo galo, ao amanhecer.
A manhã ali se põe
de pé antes de querer.
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Por outra, ali a manhã
não mais serve ao seu fim:
em vez de acordar, acorda-a
o Mestre Valentim
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No Cais do Canto do Mangue
é água mansa de rio,
apenas arrepiada
por uma onda de frio:
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a pele cortada pela
lâmina corrente de ar
que sobre o dorso das águas
desce da noite do mar.
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Dali os veleiros partem
todos a uma só hora
e transpõem a barra antes
que a transponha a aurora.
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As mulheres que ficam não
esperam pelo seu homem.
Tudo é tão rotineiro
como sua antiga fome
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ou como o feto anual
que lhes intumesce o ventre
ou, ainda, como a morte
de um tísico, seu parente.
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Meninos sujos, sem cor
definida, fazem festa
nas poças frias de lama
da Rua da Floresta.
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(O galo da torre, olhando,
humanamente tece
um canto rubro de amor
às crianças. Mas permance
**
- porque feito de metáfora -
silente na altaneira
torre cinza de azulejos.
E depois olha a Ribeira.)
(Poema de Nei Leandro de Castro in Romance da Cidade de Natal)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Pastoril



     Dois meses antes do Natal, o velho Honório começava a ensaiar o Pastoril. Pegava as meninas pobres do bairro e formava os dois cordões: o azul e o encarnado, a quem ensinava, com impaciência infinita, os versos de saudação ao menino Deus. Eram cinco meninas para cada lado, mais a Diana, que se vestia de azul e encarnado, em partes iguais.
Sou a Diana, não tenho partido
O meu partido é os dois cordões...
cantava a dianazinha magra, de cor encardida, sem os dois dentes da frente. Mas era muito difícil ser Diana. De repente, o velho Honório pulava de sua cadeira de palhinha, colérico:

     - O meu partido são os dois cordões! São, são os dois! Pela enésima vez, observe a concordância verbal. - A dianazinha tomava um susto enorme, corria chorando pra casa e não voltava mais, mesmo com a promessa de que ia ganhar roupa nova, uns tostões e muito confeito.
     O pastoril pra ser completo tinha que ter ainda a Borboleta e o Palhaço Isso era mais fácil de arrumar. Todo mundo queria se vestir com as roupas lindas da Borboleta que também cantava, mas ainda bem que seu Honório não se zangava com o que ela cantava, nunca pulava da cadeira com raiva da Borboleta.
     Há dois anos que o Palhaço incontestável era Rizete. Pintava o rosto com cortiça queimada e papel de seda vermelho desmanchado em água, vestia roupas dos irmãos mais velhos, umas botinas reiúnas e fazia o diabo. No ano de sua estréia, logo que entrou em cena, levantou a perna e fez a imitação mais perfeita de um peido altissonante.
     Ao palhaço era permitido tudo, por isso o velho Honório controlou sua estupefação. Mas bem que a cólera lhe subiu até a cabeça, deixou-lhe o rosto magro, escalavrado pelo tempo, com manchas vermelhas de ira. Em sua volta, todo mundo ria sem controle. Rizete apalpou o fundo das calças folgadas, fez uma careta inimitável e gritou:
     - Ih, me borrei! - E saiu correndo pra dentro de casa. Tinha comido muito bolo quente.
     Em volta do palco armado para o pastoril, com exceção do velho Honório, todo mundo gargalhava. A contramestra, num frouxo de riso, empapou de mijo o vestidinho azul e nessa noite o seu cordão ficou desfalcado.
(texto extraído do romance O Dia das Moscas de Nei Leandro de Castro, ilustração pintura em óleo de Lourdes Ferraz)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Uma viagem a Paris



Um dia desses fiz uma visita a Paris dos anos 20, na agradável e erudita companhia de William Wiser. Foi uma viagem deslumbrante em todos os sentidos. Na primeira visita a Montmartre, dei de cara com a Josephine Baker passeando com um leopardo preso a uma coleira prateada. A cidade e seus habitantes estavam tão acostumados com as esquisitices da cantora que só turistas e crianças paravam para vê-la desfilando com seu bichinho de estimação. William me levou à casa de Gertrude Stein e eu confesso que não gostei muito daquela mulher baixinha, parecida com uma índia asteca, mandona, sempre encangada com Alice Toklas. Alice, sim, era um doce de pessoa, de gestos meigos, suaves murmúrios. Estive na Shakespeare& Co., de Sylvia Beach, mulher que somava talento, amor aos livros e generosidade. James Joyce, sempre arrogante e exigindo favores de Sylvia Beach, estava lá, derreado numa poltrona ao fundo da livraria. Era um gênio posando de gênio. O autor de Ulisses, quando se permitia dialogar com alguém, encerrava o papo com a sentença: "Você precisa ajudar James Joyce." E muitos acabavam ajudando o irlandês genial, mas que os mecenas não se atrasasem nas remessas. Se a ajuda não chegava no dia combinado, Joyce escrevia ao caloteiro: "Eu ficaria muito feliz se so seu cheque mensal me chegasse pontualmente."
*
Vi Ernest Hemingway várias vezes, no Le Coupole e nos bares de Montparnasse, mas guardei uma certa distância. O autor de Paris é uma Festa, alto, fortão, gostava de lutar boxe e qualquer lugar poderia se transformar em ringue para suas exibições. Hemingway e Scott Fitzgerald estavam sempre se estranhando. Fitzgerald era irôico, vencia o adversário nas tiradas de humor, mas não suportaria meio round de luta, mesmo se Hemingway lutasse com um só braço. Irônico também era o compositor Erik Satie, que vi perambulando pelas ruas do subúrbio de Arcueil - solitário, excêntrico, místico, maravilhoso. Na solidão do seu apartamento, pouco maior do que uma cabine telefônica e que nunca passou por uma limpexa. Satie construiu uma obra que ocupa lugar de destaque na história da música moderna.
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William Wiser é um cicerone incansável. Só repousa um pouco quando se senta em volta de uma mesa do Le Coupole ou da Closerie des Lilas, e pede um bom vinho. Ele faz um brinde àqueles que tiveram seus caminhos, seus talentos, cortados pela loucura ou pela morte prematura, como Zelda Fitzgerald, o poeta Hart Crane, Isadora Duncan e o romancista Raymond Radiguet. Mas a viagem não é para cultuar os mortos, tanto que William se recusa a visitar o cemitério Pére Lachaise, a maior concentração de mortos ilustres por centímetro quadrado. Ele prefere caminhar comigo pelo Jardim de Luxemburgo, luxo e luxúria de verdes.
(Crônica de Nei Leandro de Castro, in Rua da Estrela, foto de Sandra Porteous)