quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Pastoril



     Dois meses antes do Natal, o velho Honório começava a ensaiar o Pastoril. Pegava as meninas pobres do bairro e formava os dois cordões: o azul e o encarnado, a quem ensinava, com impaciência infinita, os versos de saudação ao menino Deus. Eram cinco meninas para cada lado, mais a Diana, que se vestia de azul e encarnado, em partes iguais.
Sou a Diana, não tenho partido
O meu partido é os dois cordões...
cantava a dianazinha magra, de cor encardida, sem os dois dentes da frente. Mas era muito difícil ser Diana. De repente, o velho Honório pulava de sua cadeira de palhinha, colérico:

     - O meu partido são os dois cordões! São, são os dois! Pela enésima vez, observe a concordância verbal. - A dianazinha tomava um susto enorme, corria chorando pra casa e não voltava mais, mesmo com a promessa de que ia ganhar roupa nova, uns tostões e muito confeito.
     O pastoril pra ser completo tinha que ter ainda a Borboleta e o Palhaço Isso era mais fácil de arrumar. Todo mundo queria se vestir com as roupas lindas da Borboleta que também cantava, mas ainda bem que seu Honório não se zangava com o que ela cantava, nunca pulava da cadeira com raiva da Borboleta.
     Há dois anos que o Palhaço incontestável era Rizete. Pintava o rosto com cortiça queimada e papel de seda vermelho desmanchado em água, vestia roupas dos irmãos mais velhos, umas botinas reiúnas e fazia o diabo. No ano de sua estréia, logo que entrou em cena, levantou a perna e fez a imitação mais perfeita de um peido altissonante.
     Ao palhaço era permitido tudo, por isso o velho Honório controlou sua estupefação. Mas bem que a cólera lhe subiu até a cabeça, deixou-lhe o rosto magro, escalavrado pelo tempo, com manchas vermelhas de ira. Em sua volta, todo mundo ria sem controle. Rizete apalpou o fundo das calças folgadas, fez uma careta inimitável e gritou:
     - Ih, me borrei! - E saiu correndo pra dentro de casa. Tinha comido muito bolo quente.
     Em volta do palco armado para o pastoril, com exceção do velho Honório, todo mundo gargalhava. A contramestra, num frouxo de riso, empapou de mijo o vestidinho azul e nessa noite o seu cordão ficou desfalcado.
(texto extraído do romance O Dia das Moscas de Nei Leandro de Castro, ilustração pintura em óleo de Lourdes Ferraz)

Nenhum comentário: