quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Angústia

Angústia, ao atravessar um rio, viu uma massa de argila e, mergulhada nos seus pensamentos, apanhou-a e começou a modelar uma figura.
Quando deliberava sobre o que fizera, Júpiter apareceu. Angústia pediu que ele desse uma alma à figura que modelara. e. facilmente, conseguiu o que pediu.
Como Angústia quisesse, de si própria dar um nome à figura que modelara, Júpiter proibiu e prescreveu que lhe fosse dado o seu. Enquanto Angústia e Júpiter discutiam, Terra apareceu e quis que fosse dado o seu nome a quem ela fornecera o corpo.
Saturno foi escolhido como árbitro. E este, equitativamente, assim julgou a questão:
"Tu, Júpiter, porque lhe destes a alma, tu a terás depois da morte. E tu, Terra, porque lhe destes o corpo, tu o receberás após a morte. Todavia, porque foi Angústia quem primeiramente a modelou, que ela a tenha, enquanto a figura viver.
Mas, uma vez que existe entre vós uma controvérsia sobre o nome, que ela seja chamada 'homem', porque feita do humus."
(Fábula 220 de Caius Julius Hyginus, escravo pessoal do Imperador Caio Júlio César Octávio)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Presença e ausência de Rogério Rossini

Vamos à procura de uma canção de amigo
que tenha um arranjo iluminado:
ruídos de bar, violinos de Bach,
regência de um maestro apaixonado
pela vida, embriagado de beleza e som.
E que bebia a alegria em grandes goles
com muita pressa, como se soubesse
que não faria a tempo a canção perfeita.
Vamos à procura de um choro só de flauta doce
que chore a perda do amigo, doce amigo
de mãos longas que não chegaram a compor
todos os adeuses a que tinham direito.
Vamos à procura de um réquiem
que não seja assim tão triste:
que tenha risos e guisos, quase uma ode à alegria
sobrepondo-se à dor, ao pranto, ao câncer.
Vamos à procura de uma elegia em pianíssimo
onde se desenham compassos, passos, abraços
entre clavas de sol e laços de ternura.
Vamos à procura da provável harmonia além da vida
que move estrelas, corações e mentes,
para entendermos a morte do amigo tão presente
e tão ausente: Rogério Rosalém Rossini.
(Poema de Nei Leandro de Castro, junho 1989. Foto imagens Google)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dever de casa

A casa visitada pelas brisas.
Aconchego de varanda.
O quarto. A planície da cama.
Lençóis com perfume de lavanda.
***
No verde da grama,
os pés quase alados
de uma mulher que ama.
***
Sala-de-estar
velhos amigos frente a frente.
Sala de estar contente.
***
Como requer água
o corpo que tem sede,
as paredes do alpendre
pedem rede.
***
Mesa farta, generosa mesa.
Doce campo de batalha,
lutas de gulas, gentileza.
***
Uma casa fria é abandono.
A casa tem o calor e o tamanho exatos
do coração do seu dono.
***
Na biblioteca, pise com cuidado.
Os livros são almas sensíveis
e têm um sono delicado.
(Poema de Nei Leandro de Castro, foto de Mário Meir)

domingo, 1 de agosto de 2010

Una città, una donna

Vejo-te desbravando o inédito, o jamais dito,
a aventura feita de águas e sombra, labirinto e canais.
Estás nua e estás de joelho, como quem pede, como quem peca
por antecipação. O cheiro que vem das águas sobe
pelas tuas narinas acesas, faz arfar os teus seios,
mas agora queres tão-somente a paz da città, o milagre da città,
embora tenhas um desejo mais intenso do que as marolas
de 1.500 anos inauguradas e acumuladas na tua pele.
Quem é mais bela e sensual? Quem mais misteriosa?
A città que seduz e enlouquece os homens e a história
ou a mulher nua, sensível, de joelhos, com uma provável
rosa entre os seios?
De longe e de perto, Casanova te devora com os olhos.
Carpaccio encharca com seus vermelhos profundos
as auréolas do teu corpo. Feminina, segue pelos labirintos
do espanto e do prazer. És quase sereníssima,
apesar do ardor em teus sentidos, da nostalgia
de uma noite de êxtase, de beleza, quando o teu corpo
de repente inundou todas as margens. E jamais
conseguiste outro êxtase tão intenso. Ondas, remanso e paz.
(Poema de Nei Leandro de Castro, foto do imagens do google)