sábado, 3 de março de 2012

Cavaco-chinês

Pela rua Professor Zuza, a caminho do Sebo Vermelho, vi passar um vendedor de cavaco-chinês, tilintando o seu triângulo de aço. Comprei uns cavacos, dei uma mordida daquelas de menino guloso, e aí começaram a surgir lembranças da minha infância, em enxurradas, como ocorreu com Marcel Proust ao provar sua "madeleine". Apressei o passo, já pensando em acertar com Abimael Silva a edição dos sete volumes do meu romance autobiográfico. Mas ao chegar na avenida Rio Branco as minhas lembranças já estavam embaralhadas e diluídas. Comi o resto do cavaco-chinês, que não surtiu o efeito desejado, apenas me deu sede, frustração. As memórias da infância que se salvaram não ocupam duas laudas digitadas, mesmo assim vou colocá-las no papel, enquanto espero outra avalanche à maneira de Proust. Da próxima vez, pretendo experimentar grude de Estremoz como detonador de memória. Enquanto espero, ponho à mostra o que se salvou provocado pelo gosto de infância do cavaco-chinês.
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Meu tio Miguel Leandro era tabelião em São Jósé de Mipibu. De vez em quando eu passava férias na sua casa, que ficava em frente a uma praça grande, com coreto, onde à tardinha as meninas passeavam numa direção e os meninos no sentido inverso. Era a passeata do flerte. Havia os olhares compridos e pidões dos pequenos machos e olhar dissimulado das fêmeas em flor. Elas também usavam um risinho baixo, com as mãos escondendo os dentes, e as mais ousadas sacudiam os cabelos, em gestos sensuais que lembravam as artistas de cinema. Zizi era a minha favorita por duas razões: sacudia os cabelos como ninguém e tinha sotaque carioca. Foi difícil, valeu uma peregrinação em torno da praça que talvez superasse os quilômetros do Caminho de Santiago, mas consegui chegar a Zizi. Ela não tinha tia: tchinha tchitchia. Pronunciava djia, noitche e outros sons que soavam como música aos meus ouvidos de apaixonado. No terceiro dia de namoro, Zizi me perguntou se eu tinha bicicleta. Gaguejei um pouco e disse: "Meu padrinho Dinarte me prometeu uma bicicleta como presente de aniversário de 15 anos. Só faltam três anos." Zizi deu uma risada e até o seu riso tinha sotaque do Rio de Janeiro. Mesmo debochado, era um riso lindo. Deu as costas, foi embora e no dia seguinte eu a vi pedalando a bicicleta de um concorrente meio abusado.
(Texto de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela Crônicas)

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