domingo, 4 de julho de 2010

A gula

A gula brilha nos olhos grandes dos glutões, com o fulgor das gemas malpassadas. A gula mergulha e nada no frigir dos ovos, no ouro liquefeito do azeite de dendê, naufraga em molhos untuosos: bechamel. Na mesa, a gula rende-se à beleza trágica do leitão asfixiado por uma maçã. A gula trespassa com a língua e com os dedos a cobiçada virgindade das empadas. De noite, quando a lua é uma fatia de queijo no infinito, a gula toma a geladeira de assalto, em busca do último pedaço de camembert que se refugiou no frio, protegido por mortais mortadelas. A gula é docemente herética: adora papos-de-anjo, barrigas-de-freira, toucinhos-do-céu e a eternidade tecida em fios de ovos. Com olhar mendigo, a gula lambe os chocolates do hemiplégico. A gula se perde e se encontra em paisagens de sonho: montanhas de claras em ponto de neve, bosques de algodão-doce e alcaçuz, às margens de um lento e silencioso rio de leite condensado. Mel sobre panquecas, morangos soterrados pelo creme, nozes e amêndoas cobertas de calda de morango, o sabor e o perfume da baunilha sob camadas de mousse - eis os jogos de esconder da gula. A gula adora os lábios carnudos e trêmulos das gelatinas. Politicamente incorreta, ela alimenta o seu desejo mais intenso: omeletes de ovos de avestruz com recheio de corações de beija-flor no café da manhã. A gula se banha em cascatas de saliva. Carrega nos bolsos pegajosos de gordura o seu pecado capital. Não teme o inferno e suas amarguras de jiló. Rejeita a cozinha insossa do purgatório. E só admite um céu: o palatino.
(Texto de Nei Leandro de Castro, ilustração de Caravaggio)

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