quinta-feira, 7 de julho de 2011

Rodrigues Alves


O homem magro, moreno, com sobrenome de presidente da República, morava na Rua Potengi, bem perto do Atheneu, onde ensinava português. O salário de professor - porque sempre houve no país um criminoso aviltamento do salário desses profissionais - mal dava para Francisco Rodrigues Alves sustentar a família de quatro filhos. Viva modestamente, mas ninguém jamais o ouviu se queixar da sorte, do custo de vida, de nada. Sempre de paletó e gravata, ele enfrentava as adversidades com a mesma coragem com que enfrentava o verão natalense metido naquela roupa invernal.
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Quando Rodrigues Alves veio ser nosso professor, no curso Clássico, a minha turma estava saindo de um trauma. O professor a quem ele sucedeu era um homem de um mau humor terrível, que chegava à sala de aula como se tivesse atravessado os círculos infernais descritos por Dante. Esse estado de espírito se refletia na ferocidade com que ele passava exercícios e dava notas. Teve sorte quem não se incompatibilizou com Camões para o resto da vida, porque o gênio lusitano só servia para análises sintáticas dificílimas. O mestre, que além de mau humorado era arrogante, lia em voz alta as besteiras cometidas por seus alunos e, em seguida, exibia um rosário de zeros. Nessas horas, ele esboçava um sorriso, pura zombaria. Portanto, na chegada do novo professor de português, a turma estava toda arredia, cheia de medos, alguns tinham ficado para trás, reprovados na matéria. Mas as primeiras aulas do professor Rodrigues Alves mostraram um homem cordial, sensível, que trazia autores clássicos para a sala de aula, não para maltratar ninguém, mas para despertar nos alunos o gosto pela leitura. Era apaixonado por Machado de Assis e transmitiu para muitos essa paixão. Não admirava muito as romantiquices de José de Alencar, que parecia um europeu travestido de índio, seguindo uma moda européia, cheio de mugangas de estilo, sob o sol dos trópicos. Gostava de alguns parnasianos, principalmente de Vicente de Carvalho e Olavo Bilac. Mas a Semana de 22, com Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira à frente, era para ele o grande marco da nossa literatura. Mesmo os alunos menos apegados à leitura começaram a visitar a biblioteca do Atheneu, dirigida por Zila Mamede, graças ao entusiasmo de Rodrigues Alves pelo romance, pelo ensaio, pelo conto, pela poesia.  As aulas de português se tornaram um prazer. O professor do ano anterior, um saco de mau humor, foi esquecido em algum dos círculos de Dante. Prevaleceram a bondade, a cordialidade, a alma sensível do professor Rodrigues Alves.
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Alguns anos depois, encontrei o meu querido mestre no Rio de Janeiro. Morava num apartamento modesto, no bairro de Fátima, e amargava uma solidão de viúvo. Conversamos, lembramos os velhos tempos do Atheneu, ex-alunos que já se destacavam como advogados, médicos, jornalistas. Ele lembrou Machado de Assis, em sua viuvez dilacerante, e recitou o soneto que o gênio do Cosme Velho dedicou à amada morta: "Querida, ao pé do leito derradeiro..." E chorou, meio envergonhado, mas chorou.
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Três alunos do professor Rodrigues Alves tornaram-se grandes amigos: Danúbio Rodrigues, filho do mestre, Odúlio Botelho e eu. Danúbio era um contador de estórias cheio de talento. Odúlio tinha uma voz melhor do que a do afetado Aguinaldo Rayol e enriquecia as serestas que fazíamos para as namoradas. Eu havia desistido de jogar futebol e não sabia o que ia fazer na vida.
(Crônica de Nei Leandro de Castro in Rua da Estrela, Crônicas)

Um comentário:

Angelo Mario de Azevedo Dantas disse...

Olá.
A respeito do Colégio Ateneu cabe uma notícia: é que o primeiro prédio dessa importante escola também abrigou o quartel do comando da polícia militar do RN por algum tempo. Isto ocorreu lá pela década de 1870. O majestoso prédio, atualmente ocupado pela secretaria municipal de tributação de Natal foi um tanto quanto alterado em suas formas. Até a frente mudou, pois antes era para a Junqueira Aires (atual Camara Cascudo). Na foto postada acima comprova o aqui alegado. O mesmo prédio também abrigou a antiga faculdade de farmácia e odontologia de Natal, mas a frente já era para as bandas da av. Rio Branco.
No mais, parabens pela abordagem feita.
Grande abraço,
Angelo Dantas