sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Grandes amores e traições

Aos 28 anos de idade, numa noite sem lua e sem estrelas, cometi uma grande traição a quem eu amava imensamente. Dei as costas para Natal e fui viver minha paixão pelo Rio de Janeiro. Para trás ficavam lugares e momentos inesquecíveis: os banhos no rio Potengi, os mergulhos no Poço do Dentão, a magia da rua da Estrela com a rua Professor Zuza, o areal sem fim da rua Apodi,os mistérios do Morro do Estrondo, a beleza das praias de águas mornas, a ternura eterna de dona Alice, um certo capitão Antônio de Castro que, numa noite, na praça Pio X,deu uma surra num marginal forte e valentão que ousou bater na criança que era o meu irmão Airton. Havia ainda, como uma saudade incurável, uma flor e um maremoto de paixão chamado Margarida. O Rio de Janeiro estava lá, aberto aos meus olhos, disponível ao meu êxtase: uma cidade bela, belíssima, muito grande para quem estava habituado a viver nos limites da província. Foi um difícil começo. Sem dinheiro, sem parente ou aderente que me pagasse uma média com pão e manteiga, foi difícil viver aquela paixão. Tentei vender enciclopédias e descobrimos - eu e o dono do negócio - que eu era o pior vendedor que já havia passado por aquela empresa. O primeiro emprego surgiu meses depois, numa editora que ficava no bairro de Ramos, quatro quilômetros depois da casa do Carvalho. Eu pegava um ônibus bem cedinho, e rodava uma distância Natal-Macaíba, pela avenida Brasil, num trânsito que àquela época já era intenso e perigoso. O percurso de volta, depois de oito horas de trabalho e um lanche nos botecos de Ramos, era ainda mais difícil e doloroso. Certo dia, cansado de tudo com planos de morar em Quixeramobim ou casar, com uma viúva remediada, recebi um novo alento. Uma amiga minha leu um texto que lhe mostrei e disse: "Você leva jeito para publicidade. Conheço uma agência que está precisando de redator". A propaganda, embora seja a profissão que mais reúne egos hiperinflados, é uma fonte de renda. Agora, sim, eu já podia ver o pôr-do-sol de Ipanema sem pensar em dívidas. Podia me sentar num banco à beira-mar, na beleza tranqüila do Arpoador. Podia passear pela Urca dos meus amores. Podia viver intensamente a minha paixão pela cidade mais bela do mundo. Como se não bastasse, numa noite de 1972, no lançamento de um livro em Ipanema, uma mocinha magra, de uma beleza angelical, pele bem clara, cabelos escuros e fartos, se aproximou de mim, com um cigarro entre os dedos e me perguntou se eu tinha isqueiro. Naquele tempo (que horror!) eu fumava e tinha isqueiro. Esse encontro foi mais uma das dádivas que o Rio de Janeiro me ofereceu. Passei a compartilhar minha paixão pela cidade com uma mulher sensível, inteligente, amorosa, companheira de todas as horas. Juntos, também fizemos nossas traições. De repente, quando o Rio se descuidava, a gente o traía com Paris, Roma, Florença, Veneza, Lisboa. Voltar para Natal, em 2005, terá sido uma traição? Acho que não. Foi mais uma reconciliação com a cidade traída em 1968, numa noite sem lua, sem estrelas, sem esperança. Espero que o Rio e Natal compreendam. E compreendam também as nossas paixões renovadas por Paris, Roma, Florença, Veneza, Lisboa.
(in Tribuna do Norte, Nei Leandro de Castro)

Um comentário:

Adelle Nogueira disse...

Oi, Sandra! Começo agora a conhecer seu blog e já me deparo com este último artigo do Nei, que eu adorei. Ontem mesmo escrevi pra ele sobre o mesmo.

Beijos... vou continuar meio passeio por aqui.